Foi há três anos. Com o futuro em suspenso, Promises irrompia como um zénite levitante e intenso. Seria jazz? Electrónica? Uma outra dimensão? No diálogo transgeracional entre Pharaoh Sanders e Floating Points, o chão flutuava. Matéria cósmica de suspensão e invenção, admirava não só pelo elo harmonioso entre duas personalidades distintas como sobretudo pela transcendência estelar despertada por esse improvável encontro.
Foi o saxofonista a procurar o produtor quatro décadas mais novo, após ouvir Elaenia em 2015. Floating Points compôs e tocou quase todos os instrumentos. A London Symphony Orchestra foi chamada a engalanar a peça com a subtileza dos grandes combos. Saber ocupar o espaço certo é um exercício de dificuldade elevada mas a resolução está na filosofia e só depois na matemática. Promises gravitava em torno de uma peça composta pelo produtor, tecida em nove andamentos atmosféricos assomados pela gravidade de Pharoah Sanders. Uma obra maior prosseguida de formas distintas para ambos. Para a lenda do jazz, seria o derradeiro aceno - e que partida! - enquanto para Samuel Shepherd Promises agia como o primeiro álbum do resto da sua vida.
Estimulado pelo brilho e alcance de Promises, ainda hoje reluzente como um dos álbuns mais importantes desta década, Shepherd dedicou-se, no final de 2022, a um outro desafio multidisciplinar. No teatro das operaçōes, está a primeira banda sonora para bailado. Mere Mortals foi criada para a San Francisco Ballet, liderada pela directora artística Tamara Rojo. De um outro ponto de vista, explorava-se a sincronia entre som e dança, mediada não por uma pista mas por um palco e por uma plateia de cadeiras. Enquanto trabalhava de sol a sol na música para ballet, as noites chamavam pelo habitat natural da electrónica. E por fim, Cascade. Mais do que um reencontro com a fisicalidade, um acto contínuo de Floating Points enquanto corpo em rotação e mutação.
Na adolescência passada em Manchester, Shepherd perdia-se nos discos de Autechre, J Dilla e David Morales enquanto formava uma identidade não-tribal. Cascade é uma incursão à vida nocturna de Manchester e ao chamamento dos clubes com o saber acumulado das experiências prévias. Esse racional não aprisiona; antes pelo contrário, desprende o corpo e projecta-o para um estado de procura, descoberta e perdição que contraria o funcionalismo reinante na música electrónica - esta semana, o produtor e DJ Friend Within reparava que sete dos dez primeiros posicionados no Beatport remisturavam ou repescavam velhas cançōes. Êxitos, refrães familiares, risco zero. Desse ponto de vista, Cascade radica no conceito lato de música devolucionária que reivindica bases fundamentais de não-desvirtuação dos princípios criativos de resistência que ganham terreno em domínios contra-culturais como o rock, o hip-hop e a electrónica, adulterados pela pressão corporativa do mais e menor.
Enquanto produtores medianos como Fred Again… fundem pisos conhecidos como o 2 step, o UK Garage e o house de pacote nos lugares comuns emocionais da empatia e auto-ajuda, Floating Points devolve-nos uma ideia quase abandonada de música de dança inteligente com um sexto sentido aguçado, coordenadas espaciais de tecno minimal em Key 103 e engenharia molecular em Ocottilo. Há fragmentos de IDM, acid house e psicadelia digital a pairar.
O êxtase de Cascade não se cinge ao corpo, a dopamina é cerebral e faz efeito. O movimento expande-se, liberta a mente e aclara o invisível. Formado em neurociência, Shepherd faz uso de todas as capacidades na procura pelo equilíbrio entre armazéns abandonados, laboratórios fechados, céus abertos e coreografias. Não é apenas um pensador, é um idiossincrata com prática. Já há muito poucos como ele. Defendê-lo é permitir hipóteses de futuro.
Ed. Ninja Tune
Recomendaçōes não-algorítmicas
Nilüfer Yanya - My Method Actor
Ainda faz sentido chamar-lhe rock? Engavetá-la no indie? Estes códigos de barras ainda têm significado? O perfume de My Method Actor está na feminlidade. Nilüfer Yanya não maneja a guitarra como se quisesse importar hormonas masculinas, mas como um canto de sereia. Imagine-se os Radiohead pós-Kid A como banda de suporte de Sade. Sente-se alguma falta da virilidade noventeira de Painless mas My Method Actor é disco de processos elaborados e digestão lenta. E, sim, por vezes, acerca-se da "música de músicos" quando as voltas do tricot se perdem da canção mas Like I Say (Runaway), Mutations, Call It Love e Faith's Late (aquela secção final de cordas) devolvem a intenção com brilhantismo. Não se distingue por superar os anteriores, mas antes por requisitar outros desejos.
Wendy Eisenberg - Viewfinder
Após anos com problemas oculares graves, Wendy Eisenberg submeteu-se à técnica de laser Lasik em 2021. Correu risco de cegar mas a cirurgia não só corrigiu a falta de visão como como lhe deu uma nova claridade e tacto. A percepção do mundo mudou e Viewfinder reflecte essa readaptação à imagem e ao cromatismo ao longo de 79 minutos de improvisação. Não é por isso um disco de pontos de vista concretos ou definitivos mas de redefiniçōes de pontos de vista, de alusōes visuais e saída da câmara escura para a claridade com uma intensidade brilhante. Eisenberg é guitarrista do grupo de Bill Orcutt e a influência é palpável mas esta visão pertence-lhe. Espantosa a forma como foi capaz de traduzir a redescoberta do sentido de vida numa forma singular de jazz.
Nídia & Valentina - Estradas
Tem dado um gozo enorme seguir os passos de Nídia desde os primórdios ainda como Minaj até à produção para Fever Ray e uma remistura para Kelela, entre outros avanços no circuito internacional, com e autónoma da Príncipe. Em Estradas, a simbiótica com a linguagem percussiva de Valentina Magaletti é perfeita. A região de cada uma é demarcada mas a intersecção é tão pacífica que os limites se derretem no ritmo. Desde os primeiros segundos que somos preparados para o que se irá passar a seguir. Marimbas, batuques, ritos tribais e atmosferas impōe uma noção de movimento, espelhada na metáfora das Estradas. As temperaturas oscilam mas a troca é constante. Um disco rico em reciprocidades, a incitar o mutualismo. Excelente.
Jonas - Maçã d’Adão
Merecia outra exposição e reconhecimento São Jorge, o álbum de estreia de Jonas em 2021. Maçã D’Adão é ainda melhor do mesmo. Fado laminado, ancorado no classicismo embora sem receio de profanar a tradição e de a vincular a outras rodas como o cante alentejano em Gula ou à família gitana em Severa Y La Virgen. É fado multidisciplinar que, tal como Jonas, rejeita os monocromatismos, e se liga a uma plasticidade das palavras que transcende a descodificação verbal e relaciona fonética e corpo sonoro. Fado que bate com os pés no chão, ou não fosse também bailarino e coreógrafo enquanto parte da dupla Jonas&Lander, indistinguível da prática fadista. Maçã d’Adão fala também por uma Mouraria Moirama afluente de veias ibéricas e afro-brasileiras que não só combatem puritanismos como convidam o fado para dançar. Fado com memória vivido no presente como deliciosa Vaidade sobre uma mulher dona do seu corpo de botox e silicone. Não restem dúvidas, Jonas é uma das personagens mais desafogadas e agitadoras de um fado que não precisa de sair de casa para dialogar.
Paradise Cinema - returning, dream
A Gondwana de Matthew Halsall não falha. Nem haveria margem de erro possível quando é Jack Wyllie dos Portico Quartet e Szun Waves a projectar as imagens dos Paradise Cinema. returning, dream parte de recolhas sonoras em Dakar e Sydney que dialogam com o jazz textural, ora atmosférico, ora dinâmico, lubrificado por mestres como Jon Hassell, Terry Riley, Don Cherry e Midori Takada. Ponderação, liberdade e improviso. Com este triângulo, não há defesa possível.