A aclamação de An Overview on Phenomenal Nature não conteve a ansiedade de Cassandra Jenkins. O sublime álbum de 2021 conciliava auto-retratos de fragilidade e crónicas de Nova Iorque escritas com placidez e unidade. Dois anos antes, tinha marcados na agenda os concertos de abertura da digressão dos Purple Mountains quando recebeu a notícia do suicídio de David Berman. As cançōes serviam de urna enquanto aceitavam a morte como episódio final da temporada.
My Light, My Destroyer segue a mesma via sacra. A luz nasce de um túnel de comiseração e séquito por respostas. O silêncio é o rascunho de onde se ergue a contemplação. Como An Overview on Phenomenal Nature, My Light, My Destroyer requer concentração de estudo para desmascarar as tensōes e perplexidades. Cassandra Jenkins lida com a dor com serenidade mas na busca pela sanidade, estas cançōes vivem no arame como equilibristas de circo.
Não é preciso gritar para se fazer ouvir, parece querer dizer-nos esta tempestade calma descarregada no primeiro verso do álbum I think you’re mistaking my desperation for devotion, ou no refrão I don't wanna laugh alone anymore, da mesma Clams Casino onde se avista a estrofe I walked bedrock/ Exposed and barren/ Disappeared into the mountains/ Knocked on every door/ Until one opened. No inferno celestial, a solidão é um instrumento de auto-determinação e transcendência, mas apesar da sua matéria vulcânica, a angústia nunca chega a entrar em erupção. São cançōes de superação pessoal que não querem ser mais altas que a multidão, apenas perder-se nela para aprender a relacionar-se com uma vida banal sem manual.
Tal como em An Overview on Phenomenal Nature, Jenkins é exímia a deitar água na fervura. O fluxo entre dor e resistência é tratado com pinças. Do testamento de David Bowie em Blackstar, à passividade de Dan Bejar (Destroyer), o jazz invertido dos Blue Nile ou a poesia em voz baixa de Aimee Mann, as fontes são água mineral para a terapia. Escolher bem os amigos também ajuda. Meg Duffy (Hand Habits), Isaac Eiger (Strange Ranger), El Kempner (Palehound), Dave Harrington (Darkside), Katie Von Schleicher, Rob Moose, Spencer Zahn e Molly Lewis trazem receita médica para a cura de My Light, My Destroyer.
My Light, My Destroyer move-se entre a sombra e a luz para representar o caos e a beleza. Não só An Overview on Phenomenal Nature não foi um aguaceiro como, três anos depois, expōe o cosmos de Cassandra Jenkins em dilatação. Cançōes com marca de água pessoal reconhecidas ao espelho na angústia e desespero de quem não apagou o amor dos contactos.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Clairo - Charm
Ao terceiro álbum, Clairo ainda está a caminho da sua melhor versão mas a sociedade com Leon Michels (de El Michels Affair) fá-la crescer na escrita e expandir-se no tempo. Charm resgata a folk rendilhada de Carole King e alguma soul pastoral para desenhar a curva do tempo de Claire Cottrill, da inocência precária de Internet ao romance gravado em fita analógica. Falta-lhe um suissinho para afirmar a maioridade mas tem a verdade que Phoebe Bridgers nunca conseguirá comprar.
Font - Strange Burden
O nome fica-lhes bem. Os Font renovam energias do pós-punk para produzir a própria electricidade. Podem ser caóticos como os Birthday Party em The Golden Calf, angulares como os Bush Tetras em Hey Kekulé ou dançáveis como os LCD Soundsystem em Sentence I e Natalie's Song. A cartilha de James Murphy é uma cábula mas aquilo que ainda lhes falta em personalidade, excede em espontaneidade. São impetuosos e racionais.
Common e Pete Rock - The Auditorium Vol. 1
Não chega para um clássico de hip-hop mas é o bastante para ser um sólido objecto de hip-hop clássico. Do abraço entre Common e Pete Rock, só podiam sair rimas preocupadas e auto-conscientes em instrumentais aprimorados pelo saber, recheados de arqueologia. No reencontro entre dois velhos cúmplices, as tradiçōes são o que foram.
SML - Small Medium Large
Gravado ao longo de quatro noites na Enfield Tennis Academy, em Los Angeles, Small Medium Large é o caleidoscópio sensorial do quinteto constituído por Jeremiah Chiu, Josh Johnson, Anna Butterss, Gregory Uhlmann e Booker Stardrum. Uma aristocracia do novo-velho-jazz da Costa Oeste em pleno exercício das capacidades de improviso, sem limites auto-impostos. Percebe-se que Chiu é o mentor principal mas os SML soam a um colectivo de personalidades, relacionadas pela visão prática, e não a um grupo de individualidades a derivar para o egotismo. O fantasma de Jon Hassell paira e ainda bem.
Mas Aya - Coming and Going
O percussionista Miguel Valdivia, que assina como Mas Aya, e a mulher Lido Pimienta mudaram-se da metropolitano Toronto para a suburbana Londres, no Ontario, durante a pandemia. Coming and Going é uma sinopse de jazz mercurial com mensagens políticas implícitas e músicos de gabarito. A ilusão de serenidade mascara tensōes como o protesto nas ruas e o activismo declarado.
Kessoncoda - Outerstate
O jazz ambientalista dos Kessoncoda tem as marcas contemplativas e reflexivas da Gondwana de Matthew Halsall. Na linha dos GoGo Penguin e do Portico Quartet, o teatro de operaçōes é cinematográfico e aberto ao rock à electrónica, ao breakbeat e à música para filmes. Um disco aberto à partida em ambiente doméstico.
Jake Xerxes Fussell - When I'm Called
Sinatra em tricot folk? Com a ajuda dos catedráticos James Elkington e Blake Mills, Jake Xerxes Fussell arranca o melhor álbum dos cinco sem perder inocência ou subtileza. As canções de When I'm Called não precisam de gritar ou pular para existir. Correm como um riacho desde as memórias da infância ao aceitar da passagem do tempo.
Shackleton & Six Organs of Admittance - Jinxed By Being
Se há duetos improváveis, este é um deles. O aventureirismo de Shackleton e o ritualismo de Ben Chasny não se regem pela harmonia. A sensação de desconforto e ilusão geram uma aura cinzenta e ritualista propiciadora de um manto espectral de difícil infiltração. O dever do risco está garantido. A opacidade metafísica de Jinxed By Being reenvia-nos para o cosmos dos Cluster, a desformatação dos Talk Talk e a gravidade de Brendan Perry dos Dead Can Dance.
Samuel Martins Coelho - Extinção
"Extinção combina técnica e emoção (...) fomentando a reflexão sobre a relação entre humanidade e meio ambiente", lê-se na declaração de intençōes do álbum de Samuel Martins Coelho. Um violino no telhado da política suportado pelo pêndulo rítmico da bateria. Sem outras palavras além dos títulos, a cenografia instrumental diz muito sobre o caminho inclinado para a extinção diz muito sobre o fluxo entre o Big Bang e o fim da espécie, ou seja o princípio presumido e o final adivinhado. Que esta música consiga transmitir tanto sem falar é admirável.
Salétile - Saturno 3 - Atmósfera 0
O futurismo e o regressismo em rota de aproximação. O choque é favorável a Saturno, aforismo de neo-psicadelia e pós-shoegaze, mas a nave dos tenerifenhos guarda outros assentos: dub, slowcore e música concreta, como se cada peça personificasse uma época distinta e a soma derivasse numa cápsula sem tempo.
Jeff Mills - The Eye Witness
Pioneiro do techno, a ciência de Jeff Mills continua a nascer em laboratório mas há muito que deixou de servir a funcionalidade das pistas. The Eye Witness, como os episódios anteriores, é electrónica mental com marcas de paranóia e caos declarado em assumida reacção a "uma realidade dura e tão impactante que molda a forma como imaginamos, prevemos e calculamos o nosso lugar em relação a tudo e a todos à nossa volta". Música transcendente de barreiras que nem por isso se abstém do movimento - a mente também é corpo.
Global Communication - 76:14 (reedição)
Em 1994, o vórtice temporal de Tom Middleton e Mark Pritchard estacionava entre Tangerine Dream e Aphex Twin (com quem o primeiro trabalhara). A veia melódica de Middleton colidia no bom sentido com a mão industrial de Pritchard e gerava-se um admirável mundo novo. Espacialista, lento e volúvel. Estilo Warp apesar de ter saído pela Sony.
Laraaji - Glimpses of Infinity
Resumo da caixa homónima de quatro álbuns, editada no ano passado, Glimpses of Infinity recupera o álbum de estreia Celestial Vibration e junta-lhe seis episódios de estúdio do mesmo período. Música para combater a ansiedade na era de todas as tensōes.
Lee Underwood - California Sigh (reedição)
Lee Underwood foi guitarrista de Tim Buckley até à morte deste mas nem isso o salvou da indigência. Se não fosse a Drag City a resgatar esta prensagem privada de 1988 do secretismo de alguns privilegiados, o anonimato persistiria. À luz dos tempos modernos, o primitivismo de California Sigh podia muito bem encaixar na pré-história da folk paisagista. Música solar e tranquila de veia california, qual Vangelis banhado pelo sol. Produção de Steve Roach exímia a retirar o excesso e a deixar apenas a reverberação das peças instrumentais em mãos de mágico ilusionista.
CJ Bolland - Camargue / Tokyo
As primeiras notas de Camargue, clássico instantâneo de 1992, têm algo de memorial. Reenviam para o começo de algo, uma época de urgência libertária e procura por novos caminhos, representada na ligação entre techno e trance. O lado B Tokyo, inédito agora, remete para o orientalismo mas não se desvia da rota de hedonismo melancólico. Talvez fosse o princípio do fim das raves.
Spiritualized - Songs in A&E (reedição)
Entre Amazing Grace e Songs in A&E, há cinco anos justificados em grande parte pela dupla pneumonia de Jason Pierce. Fabuloso álbum de cura e redenção, atravessa o vale da morte com cançōes de amor, droga e religião. A receita médica de soul reparadora e rock’n’roll espiritual ainda salva vidas.