Logo após o 25 de abril, o fado caiu na desgraça escrita pelos poetas. Era a música do regime, simbólica de uma desventura portuguesa, de entrega ao poder e subserviência. Nem o esquerdista assumido Carlos do Carmo se livrou deste fado. Para a geração de Abril, o fado era a noite escura de onde não podia sair viva. A ausência de luz e o vazio de esperança. Por isso, José Mário Branco só podia ser militantemente resistente ao fado. Quando conheceu a futura companheira Manuela de Freitas, no teatro em 1979, começou a mudar de opinião.
“Ela explicou-me que o fado é como tudo o resto: tem o bom, o assim-assim e o mau. A maior parte é assim-assim, depois uma grande parte é mau e uma pequena parte é bom. Mas, sobretudo, a Manela explicava-me o porquê de ser bom ou não. Os grandes fadistas têm uma coisa que tem a ver com o desplante, olhar as pessoas nos olhos. O fadista é um contador de histórias, é uma pessoa que exprime emoções, como o ator”, recordava em entrevista à Sábado, um ano antes de partir.
Em 1982, José Mário Branco eximia-se no Fado da Tristeza, do álbum Ser Solidário. “Deixa a tristeza sair/Pois só se aprende a sorrir/Com a verdade na boca”, repetia à boca cheia. A canção seria reinterpretada por Camané no inaugural Uma Noite de Fados, de 1995, produzido por JMB. Tinha sido Manuela de Freitas a comandar a vontade de ver e ouvir Camané no habitat natural das casas de fado. No Faia, onde era visita regular. “E mais tarde a Aldina Duarte organizou umas noites de fado no Teatro da Comuna, em que o Zé Mário também ia ouvir-me. E, aos poucos, começámos a falar sobre fado. O Zé Mário já se tinha rendido ao fado e gostava imenso”, recapitulava Camané em entrevista à Renascença.
José Mário Branco não foi apenas produtor ou maestro. Atravessou a linha da vida de Camané como mentor artístico. Moldou um som fundamentado na relação franca com o texto. Isso mesmo se é reproduzido na introdução do espectáculo de homenagem de Camané ao seu mestre, agora editado em disco. Ouve-se a direcção musical em estúdio. JMB a dirigir a voz através do peso e intenção das palavras. Gravidade, emoção, franqueza e claridade - nada é ligeiro no diálogo nem moderado na interpretação. No fundo, é JMB a conduzir o texto como o encenador guia o actor.
“O José Mário para mim foi tudo (…) Tinha uma ideia do fado como eu tenho. Manter a estética (…) e reinventá-lo de dentro para fora”, reconhece Camané na pausa para os agradecimentos, antes de se entregar à dramaturgia de Queixa das Jovens Almas Censuradas, escrita por Natália Correia, e musicada em Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades. Em entrevista ao i, José Mário Branco lembrava que no início da relação profícua com Camané hesitou por estar “mexer numa tradição longuíssima” que, por isso, teria de ser “tratada com pinças”.
Assim foi. José Mário Branco não sugou a alma ao fado, pelo contrário entranhou-se nele para o estudar e compreender melhor. E só alguém com a intuição e seriedade de Camané para despertar no produtor esta entrega e desejo de aprender. Ao Vivo No CCB - Homenagem a José Mário Branco nasceu como Camané Inquietação em março deste ano. Um concerto único, feito de repertório exclusivamente vinculado a José Mário Branco. Era para ter acabado no último aplauso mas uma nota de gratidão com esta profundidade não poderia ser exclusiva de centenas de privilegiados.
Camané revisita alguns dos seus fados mais importantes como Ela Tinha Uma Amiga, A Guerra das Rosa ou Infinito Presente, cenografados por JMB. Quando mergulha em Sopram Ventos Adversos, Queixa das Jovens Almas Censuradas, ou em Emigrantes da quarta dimensão (Carta a J.C.) tem-se a certeza que aquelas águas turvas também o asseiam. E há uma Inquietação tremenda, com as cordas de Tó Trips, a reviver a ligação directa entre Camané e os Dead Combo. “Porquê, não sei/Porquê, não sei/Porquê, não sei ainda”. Arrepiante!
É no medley de marchas de Camané (A cantar é que te deixas levar, Marcha do Bairro Alto) e JMB (Lá Vai Caneças e São João do Porto), que se cumpre a visão total de Camané sobre José Mário Branco. “Quando me diziam que o José Mário era um cantor de intervenção, dava-me vontade de rir, porque ele é muito mais do que isso”. A sua importância transcendia a militância política e os cravos de Abril. Esta homenagem é uma declaração de eterna gratidão e um reconhecimento da autoridade musical de JMB, dissolvida pela política.
“Canta da cabeça aos pés/Canta com aquilo que és/Só podes dar o que é teu”, in Fado da Tristeza
Divã - Filho Prodígio
Fantasia gótica portuguesa vista de uma praceta brutalista da Amadora. Filho Prodígio liga a catarse dos Linda Martini à sede de sangue dos Mão Morta, mediada por uma desolação pós-punk de fundo anti-liberalista, tão importante para Manchester nos anos 80, como inspiradora para o subúrbio lisboeta em qualquer altura. Filho Prodígio gatinha, cresce e quando se ouve gritar "este sangue não é teu", debaixo de um saxofone serpenteante, está da altura dos pais. E quando já não há estrada para andar - "quem correu, já não tem pernas para andar" - acontece uma Morte em Abrantes. É para descobrir bandas como os Divã que existem páginas como a do Miguel Rocha.
Man/Woman/Chainsaw - Eazy peazy
O punk vive para além do punk. Do coração de Londres, a promissora estreia das Man/Woman/Chainsaw evoca o espírito rebelde das Slits e das Raincoats, mas relaciona-se com outros prazeres instrumentais como o trabalho de cordas dos Curved Air. Faz muito barulho mas deixa o chão limpo - punk educado por Nirvana e Pixies que tem nos Black Country New Road um modelo de mundividência.
Mark Barrott - Everything Changes, Nothing Ends
Everything Changes, Nothing Ends fixa o turbilhão de emoçōes provocado pela perda da mulher Sara Kult-Smith no ano passado. O tetris reactivo oscila entre a gravidade fúnebre, o embate com o vazio, o peso da memória e a leveza da superação. É como se Barrott se reconhecesse e reerguesse através desta música de reconforto, gratidão e coragem.
Lynn Avery & Cole Pulice - Phantasy & Reality
Depois de anos de vizinhança, quer em Minneapolis, quer em Oakland, Lynn Avery e Cole Pulice vivem agora em costas separadas. Essa é a parte real da história, a fantasia está no exercício de preservação de uma linguagem comum, apesar das limitações da distância. Debaixo do mesmo sol resplancedescente da capa, o tempo é paciente e imaterial no solstício textural de Phantasy & Reality. O trompete de Ambrose Akinmusire, de quem se tornaram amigos, em A Mote of Frozen Eternity é uma terceira dimensão com potencial definitivo.
Julie Beth Napolin - Only the Void Stands Between Us
A suspensão do tempo em Only the Void Stands Between Us é a ampliação de um espaço metafísico de folk cósmica e poesia existencialista. Julie Beth Napolin invoca as sombras de Nico e as paisagens de florestas encantadas para se perder entre melodias luminosas e experimentalismo feito de camadas de drones. Um enorme manto invísivel envolvente de canções directas e límpidas de uma beleza translúcida.
The Holy Grail: Bill Callahan’s "Smog" Dec. 10, 2001 Peel Session
Há um detalhe que determina a pertença desta sessão a "outra era": o nome de John Peel. Porém, a influência do dia na rádio expande-se aos técnicos da rádio pública inglesa que definem uma estética invisível para o existencialismo estático. Deve ser por isso que Callahan convoca o espírito de Twin Peaks ao revisitá-la por palavras. Há um teatro de sombras a envolver estas cançōes pertencentes à fase de Callahan enquanto Smog. Quatro cançōes à tangente da perfeição e Jesus a aceitar o Graal.
Negro Leo - Rela
Os materiais não são novos mas a montagem alucinante faz de Rela um objecto imparável e inclassificável. Há funk favelado, MPB de violão e pandeiro, jungle de armazém, psicadelia forjada, pop latina, autotune e saxofones. Peças coladas num exercício de sonoplastia próprio de um Brasil na linha da frente da novidade.
Ngozi Family - Viva Ngozi (reedição)
O êxtase dos Stooges, o veneno dos Led Zeppelin e o psicadelismo espacial dos Hawkwind, segundo Paul Ngozi e respectiva família. Na explosão do rock zambiano na década de 70, este é um dos acontecimentos estelares. O fuzz, o rock de garagem e a pulsão do funk podiam ser americanos mas Viva Ngozi tem mão africana no ímpeto e condução. Não é por acaso que Jaki Liebezeit veio aqui buscar o volante. Quando hoje ouvimos a faísca de Mdou Moctar, sabemos identificar as fontes no mapa e calendário.