A memória selectiva dos Portishead reenvia para a Bristol dos anos 90, cidade de intenso tráfego marítimo e porto para muitos jamaicanos filhos da diáspora inglesa, desembarcados em busca da vida que o arquipélago caribenho não oferecia. O trip-hop era uma manta de retalhos de soul, dub, jazz e hip-hop, treinado pelos descendentes da colonização e racionalizado por figuras como Robert "3D" Del Naja (Massive Attack) e o produtor Nellee Hooper. Generalizar é tomar a parte pelo todo e o trip-hop é observado com lentes monofocais quando dispōe de múltiplas camadas de leitura. Portishead e Massive Attack tinham semelhanças mas eram bastante diferentes entre si - mais organizados e emotivos os Portishead, mais aventureiros mas também cerebrais os Massive Attack.
Para compreender a impermanência de Beth Gibbons na relação com a banda conjugal, vale a pena revisitar o fabuloso Third, gesto assumido de auto-sabotagem, dez anos depois de Roseland NYC Live (e desse ângulo, semelhante à reinvenção dos Massive Attack no matrix pré-milenar de Mezzanine), aclamado entre informados mas recebido com estranheza e desconforto entre ocasionais. Nem o deslumbramento colectivo salvou o álbum mais cerrado e perigoso da banda da amnésia colectiva. No terceiro capítulo, os Portishead não facilitavam a vida a ninguém, a começar pelo casulo de Beth Gibbons, Geoff Barrow e Adrian Utley. E onde em Dummy (1994) e Portishead (1997), a arquitectura fragmentada de samples de hip-hop e guitarras blues servia o doce lamento de Gibbons, em Third imperava a claustrofobia industrial e as atmosferas sombrias. Os Portishead eram os mesmos mas queriam ser diferentes. Arrumar o passado e recomeçar do princípio da inocência.
O mantra já fora seguido por Beth Gibbons no magnífico Out of Season (2002), dividido com Rustin’ Man (heterónimo de Paul Webb, baixista dos Talk Talk), um primeiro trabalho de campo com filiaçōes na pastoralidade de Nick Drake e Sandy Denny, no rasto de uma paz interior inacessível na cidade. A raridade de Gibbons nunca tinha sido tema mas acentuou-se a partir daí. A interpretação empírica da Sinfonia n.º 3 (também conhecida como Sinfonia das Cançōes Tristes) de Henryk Górecki, com a Orquestra Sinfónica da Rádio Nacional Polaca dirigida pelo maestro Krzysztof Penderecki, rompeu com um longo silêncio apenas interrompido por concertos esporádicos dos Portishead mas ainda no pino mediático da banda, sempre primou pela discrição deixando que a música falasse por ela, vedando os restantes acessos.
Sem nunca o ter assumido, já se percebera que só sairia da toca por motivos sólidos. Desafiantes como na surpreendente mas consequente participação em Mother I Sober de Kendrick Lamar. Inesperados como no cameo com os Gonga, de Bristol, em Black Sabbeth. Ou no alinhamento dos hinos Atmosphere (Joy Division) e Heroes (David Bowie) por Lanny Cordola e as refugiadas afegãs Miraculous Love Kids, revelado pelo segundo aniversário da retirada dos Estados Unidos do Afeganistão, que possibilitou o regresso dos talibãs ao poder.
Daí que o resgate da passividade activa, concretizado em Lives Outgrown, represente mais do que um belíssimo motivo para seleccionar um bom tinto da garrafeira. Se estas cançōes foram engarrafadas, é porque Beth Gibbons tem algo a acrescentar. E, sem surpresa, o mosto vem fermentado por declaraçōes importantes. “Tell me all you want to say/Tell me who you are today/Free from all I hear inside”, abre o jogo em Tell Me Who You Are Today. “Love changes/things change/Is what changes things/Time changes/Life change/Is what changes things”, da sublime Lost Changes é a vida a girar à volta das circunstâncias. “Just ask yourself how would you like life to be/Just ask yourself would you choose love like me”, debate na radiografia ao coração de Love For Sale. Nunca antes expusera a privacidade com tantos detalhes pessoais - a publicação de uma fotografia da secretária enquanto sorri para uma câmara é um sinal raro de disponibilidade para se exteriorizar sem cair no engodo da exibição.
Gibbons estava num abismo de menopausa e crise de ansiedade e deu um passo em frente na ascensão do tempo. Não é por acaso que alguns dos álbuns mais entusiasmantes dos últimos tempos aceitam a rotação dos ponteiros em vez O álbum demorou dez anos a ser escrito. Lives Outgrown nasceu na madrugada dos 50 e desaguou na curva dos 60. A inquietação não foi tratada com impaciência. As cançōes deram fruto na primavera e embora sintetizem a multitude de encarnaçōes anteriores, com maior evidência para o reatamento de laços com o misticismo da folk inglesa, descrito na fotografia promocional, é uma sessão terapêutica para aliviar os pesos nas costas.
Como sempre, Gibbons canta sobre a tristeza com luz. A gravidade é trabalhada em solo florestal com o baterista dos Talk Talk, Lee Harris, com arranjos folk pagãos seguidores do magnetismo dos Trees, ritualismo kraut, e arranjos cinematográficos de cordas. É um disco magnífico, emocional como seria imaginável nela e tangível, transparente e lúgubre - inabalável no fascínio pelo belo e permanente.
Retrato confessional de uma mulher sem medo de enfrentar uma crise existencial entre a separação do passado e a chegada do fim, destranca as portas domiciliárias como nunca até aqui e convida a auscultar-lhe a ansiedade com um punhado de grandes cançōes de desconforto e salvação como Tell Me Who You Are Today, Floating On a Moment, Rewind, Beyond The Sun e Whispering Love, passíveis da mesma devoção de Out of Season e Third. Notável.
Recomendaçōes não algorítmicas
Sús - Entre
O manto envolvente da estreia de sús respira religiosidade mas os códigos culturais são profanos. Como um feliz casamento entre o choque molecular de FKA Twigs, a gravidade dos Madredeus e a padaria de Megafone, o futurismo de Entre joga-se a partir da memória em campo de flores. Como lançar na terra uma sementeira e vê-la crescer. Mais uma voz singular a desfazer para costurar.
Crumb - Amama
Colagem de fragmentos pop melódicos e rítmicos com motivos psicadélicos, Amama sente-se bem em terra de ninguém. O mais coeso dos três episódios da grande aventura dos Crumb faz o mais difícil: encaixar com precisão peças de diferentes materiais. A produção de Jonathan Rado (com Johnscott Sanford) é indisfarçável.
From Indian Lakes - Head Void
De onde vem este fervor súbito pela pop divagadora de guitarras? Como é norma nos revivalismos, e sim não há nada de novo debaixo deste céu, há uma pequena enorme diferença entre o directo e o diferido. Os From India Lake recebem o testemunho dos Slowdive e dos Death Cab For Cutie mas têm mais viço que alguns dos pares recentes como Beach House ou Cigarettes After Sex. E, por isso, estão mais vulneráveis a passar invernos com mantas, gatos e capuccinos.
Alex G - I Saw The Glow
A banda sonora de I Saw The Glow já expunha um diamante pop de Caroline Polacheck na montra. A partitura instrumental de Alex G é fabulosa com traços do dramatismo de Angelo Badalamenti, do terror de John Carpenter e do livro de estilo para guitarras do próprio Alex G.
Ufomammut - Hidden
O brutalismo dos italianos Ufomammut atrai. Vórtice de metal psicadelista, dilui os preconceitos do peso com a imersão num caldeirão de ruído atmosférico em que força e melodia são uma só vaga. Não é um meteorito mas é um clarão.
Daga Voladora - Los Manantiales
Cristina Plaza faz tudo em Los Manantiales, primeiro álbum em oito anos abrigada sob a capa de Daga Voladora. Os recursos são minimais (guitarra, baixo, caixa de ritmos), as fontes de nível (Stereolab, Broadcast, Galaxie 500, Cate Le Bon). Frágil no bom sentido, consegue muito com pouco.
Badbadnotgood - Mid Spiral:echoes
O jazz é um grande chapéu de chuva nos Badbadnotgood. Em vésperas do concerto na Aula Magna, os Badbanotgood entregam um pedaço de liberdade e improviso banhado pelo funk e pela electrónica. Uma refeição completa adocicada no final da semana pela sobremesa This Must Be The Place (Naive Melody), com Norah Jones, servida na homenagem Everyone’s Getting Involved: A Tribute to Talking Heads’ Stop Making Sense.
Nikki Nair - Snake EP
Nikki Nair desconstrói a simbologia de hostilidade atribuída à cobra e serpenteia entre a frustração, a raiva e o prazer, como um ciclo de vida. Veneno para a pista, Nikki Nair serpenteia entre a funcionalidade das pistas de house e os baldios sem propriedade.
DJ Manny e TCJ - The Lost Highway
Tratado de footwork, contraria a eterna arritmia e expōe um conjunto de hipóteses menos exploradas como tempos menos frenéticos, células de deep house e uma sensação de harmonia a trespassar todo o álbum. Uma devolução à cultura onde o juke nasceu, geolocalizada em Chicago.