O caminho para a propriedade privada de Arooj Aftab pode ser labiríntico para quem gosta de estacionar à porta. Não fornece coordenadas exactas, não dispōe de tabuletas, não indica rota directa ou um percurso mais rápido até chegar aos portōes. Tudo é enigmático, insinuante e envolto num véu. Night Rein é uma representação fantasiosa da cortina de fumo a envolvê-la mas quando se atravessa a bruma, do outro lado há um jardim refrescante e arrebatado.
Em 2021, Vulture Prince causou espanto pelo acasalamento particular e inconvencional do jazz com a tradição urdu. Mais abstracto, Love in Exile (2023), com Vijay Iyer e Shahzad Ismaily, voltava a deslumbrar e a colher flores. No regresso ao mundo das suas cançōes, era proibido repetir-se e Night Reign não desobedece à vontade. Para alguém com treino entre o jazz, a clássica e a pop, escapar à literalidade e alargar os limites é a maior conquista para o reino.
No princípio, estava a obra de Mah Laqa Bai Chanda, a primeira poetisa urdu a publicar, no Séc. XIX, ainda sem histórico de diálogo com a música. A paquistanesa desistiu da exclusividade mas não abandonou a ideia. A soberba Na Gul e Saaqi restaram desse processo de compreensão própria através da ancestralidade. As tradiçōes do Sul da Ásia são honradas mas Arooj Aftab tem sede própria e campo aberto para avançar - a desconstrução de Autumn Leaves é modelar da sincronia entre memória colectiva e infinito particular.
Night Rein supera o lamento de Vulture Prince com romantismo, esperança e um corpo sonoro mais robusto, mas nem a mudança esquece o passado nem a trajectória omite os anseios. Na inquietante Bola Na, Moor Mother verte angústias sobre um tetris jazzístico. “I want to understand, I want to believe what I’me feeling” declama. Na récita de Arooj Aftab, a arte ocupa-se de formular questōes para responder às perplexidades.
A noite é um lugar de desejo e cura, mas também de imaginação incalculável, possibilidade e mistério. É provável que aprecie jogos de sombras e silhuetas para nos incitar ou confundir. Quando Whiskey nos devolve à fragilidade insinuante de Sade, é o regresso a um lugar ambíguo de deslumbramento e desconforto. É nesses interstícios sem respostas concretas, fronteiras desenhadas ou limites estéticos que se abriga. Como uma escuridão que aceita o dia para regular o desassossego.
Consciente das armadilhas, Arooj Aftab avança triunfal na intimidade de quem a deseja entregar sem perder a castidade. A singularidade é-lhe inata, a compreensão pode ser ampla e parte de uma redenção colectiva para a qual depoimentos como Night Rein são faróis na escuridão.
Night Rein é apresentado a 28 de outubro no Teatro Tivoli BBVA
Recomendaçōes não algorítmicas
Gastr Del Sol - We Have Dozens of Titles
Não é bem um reencontro, é antes uma recolha de gravaçōes inéditas, algumas delas ao vivo, mais de vinte e cinco anos após o fim dos Gastr Del Sol. Uma banda desconcertante em permanente metamorfose, do jazz apátrida aos dedilhados da safra de John Fahey e às torrentes de guitarras à Sonic Youth. Música impossível para os padrōes actuais que fecha um ciclo da única forma possível. Em liberdade.
Zé Menos e Pedro O Mau - Quatro Partos
Bastaria revolver excertos das discografia destes dois para adivinhar que daqui, o hip-hop só poderia ser processo e não desfecho. É em terra de ninguém que se cruzam vontades convergentes - uma lírica terapia do desassossego que tem em Grândola Vila Morena o primeiros verso (e uma Canção de Embalar, tal como Zeca) e um desenho instrumental orientado para a pesquisa. Menos com Mau é mais.
Vince Staples - Dark Times
Chama-se Dark Times e é de facto sombrio. A ruína fez bem a um Vince Staples em estado assumido de angústia, corajoso na demonstração de desconforto quando a norma ainda é mostrar a galeria de troféus. Álbum inspirado, o melhor do rapper desde Big Fish Theory.
Bat for Lashes - The Dream of Delphi
O esoterismo de Natasha Khan é permanente mas há que reconhecer um desprendimento gradual da pop formal, já denunciado no anterior Lost Girls, para se entregar a uma cenografia poética, conduzida pelo silêncio e inspirada pela maternidade. O que não significa que tenha perdido o jeito para a canção, como testemunha o single The Dream of Delphi.
King Hannah - Big Swimmer
A voz comentada de Hannah Merrick cresce na muralha eléctrica de Big Swimmer. Não é um álbum explosivo ou contido, é um teatro de desolação, constatação e redenção que se deixa ir na corrente das guitarras sem perder o rumo da maré.
DIIV - Frog In Boiling Water
Os quatro longos invernos de gestação de Frog In Boiling Water quase destruíram as condutas dos DIIV. Se a intenção era esticar a corda, conseguiram. O álbum mais aguerrido da banda não reinventa as bíblias do shoegaze e do pós-punk mas insinua uma sede própria, chuvosa no telhado.
Machinedrum - 3FOR82
Álbuns depois, Machinedrum volta a encontrar a harmonia entre uma produção acre, com eixos na cultura drum'n'bass e a doçura das vozes escolhidas (Tinashe, aja monet, Topaz Jones, Duckwrth). O corte nas gorduras EDM que fez subir o colestrol a determinada altura só lhe fez bem.
Oddissee - And Yet Still
Importar peças acústicas como a bateria não é uma novidade no hip-hop mas Oddisse fá-lo de um modo muito próprio, servindo-se dos motivos melódicos que seguem o livro de estilo para armar um corpo sonoro sem coordenadas definidas, embora próximo de algumas escolas. O quase-ska de Give Away é particularmente atraente e inesperado. Eis alguém que fica bem em diferentes fatos. Really? Really.
Ezra Feinberg - Soft Power
A delicadeza de Ezra Feinberg é preenchida por amigos que fazem música: David Moore (Bing & Ruth), Jefre Cantu-Ledesma, Robbie Lee e Mary Lattimore na jóia da coroa Get Some Rest. Abundam as melodias, as paisagens sonoras e a oportuna intromissão de guitarras acústicas, sintetizadores e harpa. Boa viagem!
Bonnie Prince Billy, Nathan Salsburg e Tyler Trotter - Hear The Children Sing The Evidence
Bonnie Prince Billy adormecia a filha a trautear estas duas cançōes da banda emo/hardcore Lungfish. Enquanto a agarrava com uma mão, tocava guitarra com a outra. Da libertação original nasceram duas longas, terapêuticas e repetitivas versōes para as quais convidou Salsburg (guitarra) e Tyler Trotter (caixa de ritmos). Reconfortante.
Catarina Branco - Não Me Peças Mais Cançōes
É em família que toda a acção deste EP se passa. Homenagem ao Grupo Coral e Musical de música popular do hospital das Caldas da Rainha, formado pelo pai Júlio Branco, recria um cancioneiro à sua maneira, ingerido por sintetizadores, sem se afastar demasiado dos princípios. Catarina Branco não é turista, vive dentro destas cançōes.
Kassian - Supercontinent
O amapiano chegou a um estado de amplitude e reconhecimento que há quem deseje descontruí-lo. O londrino Kassian assume o risco de reformular um ritmo em franca expansão (é pensar em nomes como Tyla e Asake) em Yena e Yami. E depois de ultrapassada a torrente ácida de Pulgueiro Baile, entra em cena o funk desfavelado de Sistema Baile. Baile ou desbaile?
James Hoff - Shadows Lifted from Invisible Hands
O processo de composição de James Hoff trabalha com noçōes de som interior e detritos mentais que operam de dentro do organismo para fora do corpo. É delicioso escutar Heart of Glass (Blondie), Space Oddity (David Bowie), Into the Groove (Madonna) e Perfect Day (Lou Reed) regredir a um leito imaginário, diluindo o estatuto dos clássicos.
Alan Vega - Insurrection
Com os Suicide encostados à boxe, Alan Vega nunca abrandou a fúria. Insurrection foi criado no pós-Mutator (o primeiro álbum póstumo, editado em 2021) e antes do apocalíptico 2007, de 1999. O fantasma de Elvis paira sobre uma alma torturada pela cultura do ódio, racismo, fascismo e corrupção. E de repente, o ano é 2024 e podíamos estar a ouvir os Model/Actriz.
Photek - Solaris (reedição)
Modus Operandi é um Ferrari da agitação electrónica de final dos anos 90 mas no terceiro álbum Solaris, Photek retirou a exclusividade ao jungle para se aventurar no house, sem perder a assinatura. Mine To Give é um hino em qualquer época, agigantado pela voz imaculada de Robert Owens mas Pharoah e Infinity expōe uma visão dinâmica de um produtor em fluxo dinâmico que só voltaria a gravar como Photek doze anos depois.
Harold Land - Chroma Burn (reedição)
Conhecido pelo trabalho com Bobby Hutcherson na década de 60, Harold Land faz a ponte entre os mundos de John Coltrane e James Brown no dinamismo de Chroma Burn. Inesperado e improvisado com dois bateristas, Bobby Hutcherson no vibrafone, Reggie Johnson no baixo, Bill Henderson e Harold Land Jr. no piano/Fender.
Niagara - Música para 10m2 de Relva Sintética
Gravação de um concerto no MAAT a 9 de abril de 2020 com toda a gente em casa e as taínhas do Tejo em paz a ouvir. Sara, Alberto e António, ou seja os Niagara, em expedição como Manuel Göttsching em E2-E4.
The Brkn Record - The Architecture of Oppression Part 2
Metade dos Heliocentrics, Jake Ferguson canaliza no segundo volume de The Architecture of Oppression a angústia da racialização para um manifesto de jazz afrocêntrico. Enquanto o primeiro volume denunciava sistemas opressores, o segundo reivindica um mundo negro de luz. Sem cerimónias nem silenciamentos da história. Tudo nesta sequela é visceral, catártico, filosófico, político e revolucionário.