Adrianne Lenker já não é um segredo mas continua a sondar enigmas. Talvez o seu poder de atracção venha de um lugar tão puro e límpido que sobressalta por ser tão dissonante dos padrōes de cinismo. O fascínio deste cancioneiro americano está na simplicidade, no poder singular de nos fazer chegar muito longe com poucas ferramentas. De nos arrastar para o poder de uma verdade não-absoluta mas muita próxima da cura.
Pôr Bright Future por palavras é um exercício frustrante de redução perante transcendência desses pequenos raios de luz transmitidos a partir de uma intimidade reveladora. Não se trata de um caminho da felicidade ou de um ensaio sobre a tristeza. É a exaltação da condição humana em toda a sua catarse. Racionalizá-lo é ficar aquém da carga dramática mas esta fábula tem precedentes.
No Outono de 2022, um pequeno intervalo na agenda assoberbada dos Big Thief coincidiu com a disponibilidade de três amigos. Sem plano, reuniram-se no estúdio móvel analógico de Adrianne Lenker. Na floresta mágica, juntaram-se Nick Hakim, Mat Davidson e Josefin Rusteen, familiares a Lenker mas desconhecidos entre si. O plano era apenas captar a honestidade das ideias. Sem segundas intençōes mas também sem surpresa, as cançōes foram brotando intuitivas e coesas como água a correr da fonte.
Em Bright Future, um pequeno milagre acontece: a transmissão de esperança no futuro. Involuntariamente, a candura de Adrianne Lenker fala por uma necessidade colectiva. É um disco de claridade no fundo do túnel, de uma beleza suspensiva do tempo, como num conto infantil. Talvez o verso “no surprises, you have the stars in your eyes” de Fool fale por um todo de coisas simples contadas a partir de perspectivas improváveis.
Bright Future é frágil em músculo mas gigante a formar uma auréola maior do que o seu corpo. Descende de um tronco dylanesco clássico, sem nada de novo a declarar, mas detém uma riqueza maior que os poços de petróleo no Médio Oriente: a autenticidade. “Do you wanna go to the river?”, questiona em Free Treasure. Imagina-se Adrianne Lenker a correr descalça no campo despreocupada das pedras do caminho. É um imaginário efabulado, onírico e quase infantil nas intençōes.
A escrita é profunda mas as cançōes são simples, directas e espontâneas, repletas de marcas do country. O magnetismo das sessōes, notado através do espaço entre instrumentos, transfigura as memórias em música. Bright Future afirma uma vez mais, depois do sublime Dragon New Warm Mountain I Believe in You, dos Big Thief, e do comovente Songs, a solo, Adrianne Lenker como uma actriz singular, parte integrante de uma banda formada por quatro personalidades carismáticas, e dona de um caminho autónomo apesar dos ideais comuns. Precisamos destes guias espirituais para acreditar no cessar dos fogos e no amor não como doença mas como salvação.
4AD/Popstock
Recomendaçōes não-algorítmicas
Aldina Duarte - Metade-Metade
"Já cantei por ter fome e por dinheiro mas só quero cantor para amor", confessa Aldina Duarte. Metade-Metade é arregalado pela poesia vulnerável de Capicua, perfeita para a voz magoada de Aldina. Um disco fabuloso de fado tradicional nas fundaçōes mas moderno nas preocupaçōes, como na sublime Araucária, uma declaração ao saber ancestral. As árvores não falam mas têm muito para ensinar. Na tradução da tradição, a harpa transforma sem romper. Uma canção como A Dúvida arrepia.
Tipo - Vigia
Reclama baixinho por atenção Vigia. O alter-ego de Salvador Menezes, dos You Can't Win Charlie Brown traz escrita tricotada à Grizzly Bear, animada por harmonias clássicas à Brian Wilson e uma saudável esquizofrenia a despentear as cançōes. Um disco confessional de serenidade aparente, interrompido por uma tensão muito particular, e convidados como Afonso Cabral e Noiserv, ambos membros da banda.
Julia Holter - Something In The Room She Moves
Memória e futuro são o ponto de equilíbrio de Julia Holter mas Something In The Room She Moves é habitado pela presença. O corpo frágil é uma escultura em movimento ao ritmo da vulnerabilidade e complexidade. O sexto álbum busca a paz interior rodeada e tem na pop ambiental evocativa de mestres como os Blue Nile e os Talk Talk o poder de atracção e imoblização.
Elbow - Audio Vertigo
Surpreendente o poder de reforma dos Elbow. Audio Vertigo não é a curva descendente do tempo, é a inversão do acomodamento. O décimo álbum da banda vive da complexidade, dramatismo e humor característicos mas nunca soa a emissão em diferido.
Amanda Whiting - The Liminality Of Her
Dos mesmos espíritos da paz de Matthew Halsall, que ainda no final do ano passado brilhou no CCB, Amanda Whiting entrega-nos The Liminality Of Her. O álbum vem embrulhado nos sons encantatórios da harpa. Contempla como Dorothy Ashby e viaja como Alice Coltrane. É a diferença entre música e filosofia.
Tyla - Tyla
Ser pop não é difícil. Difícil é encontrar uma receita que não tenha açúcar em demasia ou seguidista em excesso para com fórmulas certificadas. No álbum de estreia, a sul-africana Tyla, do canto de sereia Water, encontra a harmonia perfeita entre convençõe e os novos desígnios da pop africana, como as bases de amapiano.
Fogo Fogo - Nha Riqueza
A história da música de protesto está muito ligada ao ritmo e às comunidades que usaram a dança para ultrapassar a dor. Nha Riqueza é um álbum tão comprometido com os afro-bailes como com problemas estruturais como a habitação, os baixos salários e o racismo. Desigualdades combatidas com festa, funaná e semba. Pelo menos, somos felizes.
Prefuse 73 - New Strategies For Modern Crime
O meticuloso corte e costura do engenheiro sónico Prefuse 73 é em New Strategies For Modern Crime reformulado para um híbrido de jazz palpável, música concreta e cultura de beats. Banda sonora de um policial perdido em armazéns de VHS? Crível.
Ill Considered - Precipice
Na armada jazzística britânica, os Ill Considered têm estatuto secundário mas estão entre as forças vivas mais sólidas e particulares. Precipice depura e enriquece o idioma com a maior riqueza que o jazz pode produzir: liberdade de espírito.
Mega Ran & Jermiside - The Lure of Light
Tempos sombrios, hip-hop luminoso. Há mais de uma década que Mega Ran, também conhecido por Random, e Jermiside andam neste carrossel. Em The Lure of Light, a escolha instrumental é criteriosa e a lírica terapêutica. Discos assim há alguns mas nunca são demais.
Jlin - Akoma
Destruturar um ritmo tão fragmentado como o footwork é possíel? Akoma responde afirmativamente. Com Bjork, Philip Glass e o Kronos Quartet na tripulação, Jlin estabelece um compromisso entre desconstrução e solenidade. A linha da frente não tem de ser a fila da frente.
Nathan Micay - Reality (banda sonora)
Soberba banda sonora de Nathan Micay para o filme com a nova namorada dos EUA, Sidney Sweeney. Não precisamos de imagens para viver dentro da tensão sonora. A julgar pela música, a claustrofobia está bem, obrigado.
Mizu - Forest Scenes
Mais um belíssimo disco a interrogar as noçōes de território e a coexistência entre o humano e o natural. Forest Scenes fá-lo dentro da moldura criativa, como um quadro, uma escultura ou uma instalação. Moderno e pastoral, é uma viagem ao centro do som orgânico no vale encantando da floresta.
Alice Coltrane - The Carnegie Hall Concert
Monumental hino à liberdade de Alice Coltrane. A formação transita da banda do entretanto falecido John Coltrane: Pharoah Sanders, Archie Shepp, Jimmy Garrison, Cecil McBee e Ed Blackwell, de quem são interpretadas duas peças. A outra metade é de Alice. The Carnegie Hall Concert é um país de maravilhas.