O ser é inevitavelmente a sua circunstância nessa eterna permuta entre o particular e o universal. E o hemisfério de Slow J, porque é para correr mundo que treina no bairro, mudou. “Onde é que tens andado/Eu 'tou na minha/Eles querem novidades/'Tão-me a ligar”, observava com auto-consciência das infinitas expectativas sobre o seu próximo gesto na certeira e aditiva Where U @. Era o primeiro sinal à navegação de que a venda colocada entre álbuns e concertos cada vez mais episódicos estava prestes a cair.
Voltou diferente João Batista Coelho. Mais disponível, próximo, conectado. Activo na comunicação, quer em entrevistas, quer nas redes sociais, presente em palco e disponível para desvendar os passos seguintes. Mais leve e colorido, com janelas no quarto. Com um plano a servir uma identidade consolidada, admirada mas não estanque. Where u@, Grandeza, CorDaPele e Cor da Pele serviram de GPS de uma mudança gradual, assumida e coerente. O ser à parte perdeu o medo da multidão mas não esqueceu a beleza das coisas simples.
Na sexta-feira, o portal do desejado Afro Fado abriu-se de vez após quase um ano de sedução desde a estreia de Where U@ no final de janeiro. O álbum bateu o recorde nacional de reproduçōes na data de estreia, feito que Slow J até já tinha alcançado com o anterior You Are Forgiven, pulverizando agora o máximo de Cor D’Água de T-Rex, onde aliás participa e de quem foi convidado no concerto de apresentação no Coliseu dos Recreios. Acto contínuo: os bilhetes para o concerto de 8 de março na Altice Arena esgotaram. Impressionante quando faltam mais de quatro meses, tratando-se de uma sala com capacidade para perto de vinte mil pessoas. Nenhum dos factos é de todo surpreendente em 2023 mas em todo o caso, merecem ser sublinhados, ampliados e afixados.
Isso dá alento quando se trata de alguém que antes de ser maior, quis ser melhor e forçou, num esforço solitário, a corrente de que hoje também faz parte. Agora Slow J é parte da família que ajudou a constituir. Um grande rio para o qual remou quando o vento ainda não soprava a favor. Afro Fado é um bocadinho menos especial do que The Art of Slowing Down e You Are Forgiven mas é a caução de quem se tornou referência e se sente agora confortável em diluir-se nas águas sem perder as ondas. É uma conquista colectiva. De Slow J, de uma incomum relação de compromisso com os muitos mil que o seguem com seguro de fidelidade, e de uma nova música portuguesa que fala sobre e para o país, sem complexos de inferioridade.
Quer The Art of Slowing Down, quer You Are Forgiven, eram actos de afirmação individual. O primeiro, provavelmente o mais impressionante álbum da música portuguesa dos últimos anos, reivindicava um novo som para o hip-hop português à escala dos grandes vultos: Kanye West ou Kendrick Lamar como também Dr. Dre. Ciência, inteligência, ambição, pluralidade e um inevitável discurso próprio, o recheio da pujança de Slow J. Quando The Art of Slowing Down abria a porta com estrondo, You Are Forgiven fechava a janela para lidar com as dores de um aborto espontâneo. É um disco assombroso, da partilha do sofrimento - “tirava-te a dor e ficava eu com ela”, desabafa em Lágrimas -, de um homem só, a respirar entre fantasmas pessoais e fantasias sociais. O eu e o outro chocam como a realidade e a expectativa. O sonho encareceu mas o senhorio protege o inquilino. Do alto ainda se vê o T-1. “Qual topo?”, pergunta.
A música mais transformadora quase sempre parte da confrontação do instituído. Da necessidade de romper, somar e mudar. Slow J fê-lo nos dois episódios anteriores. Mas as circunstâncias alteram-se e o terceiro capítulo reflecte-o. Tudo o que há em Afro-Fado já lá morava antes. “Este é o meu fado/este é o meu semba”, proclamava na presciente Casa, um farol a alumiar até hoje.
Slow J não deserdou as origens verbais e técnicas do hip hop mas o título é auto-explicativo: Afro-Fado. O que antes partia de uma insaciável pesquisa musical, agora é busca pela identidade cultural. Sadino, filho de pai angolano e mãe portuguesa, afirma com naturalidade a mistura, aproximação e reconciliação de um Portugal a preto e branco em que a cor da pele é irrelevante. “Tu, pensas na cor da pele como a capilar/Nós vimos do futuro p'a lhes ensinar/Essa é a razão do nosso som/Combinações de cada raça e cada tom”, realça em Cor da Pele.
Slow J inscreve-se agora num involuntário colectivo que ajudou a moldar de identidades plurais, discursos variados e percursos distintos, do visionarismo dos Buraka Som Sistema à intuição de Sara Tavares, da generosidade de Dino D’Santiago à compaixão de Eu.clides. Por vezes, a necessidade de organizar a informação dissolve identidades individuais quando é da soma de partes que se forma o todo e não o inverso, mas entre todos estes e outros que têm participado na reformulação da música portuguesa, de Ana Moura a Pedro Mafama, aos Wet Bed Gang ou T-Rex, há um gesto comum de reconciliação com o passado para reconstruir o futuro. Como podemos saber quem somos se não soubermos quem fomos?
Os números podem transparecer norma, mas a unanimidade é aparente. A necessária descolonização de mentes para a reconstrução de uma identidade colectiva tanto gera consensos como resistências. Em todo o caso, Slow J continua a ser excepção, apesar de os números indiciarem normalidade porque o processo cuidado e exigente prevalece sobre a grandeza das consequências. Quanto maior a visibilidade, maior a responsabilidade, e ele sabe lidar com esse peso, reduzindo-o à naturalidade de quem faz porque quer e sente. Apesar de tudo, às vezes a vida é bela.