Parece que a Bombtrack rebentou. De acordo com o baterista Brad Wilk, “não haverá mais concertos dos Rage Against The Machine”. E se já só restavam os palcos para incendiar, quer dizer que a máquina foi desligada. A declaração pôs fim ao desejo de reatamento da digressão iniciada em 2022 quando os RATM regressaram pela segunda vez depois de uma primeira reunião há quinze anos. Entre 2008 e 2011, fizeram dos concertos sede de tumulto. Comícios populares como os partidos já nåo eram capazes de incitar em festivais associados a marcas nada interessadas em ventania política como o Rock in Rio, em Madrid, ou o Optimus Alive - o primeiro com prefixo de operadora em 2008. Para quem se lembra, foi uma noite avassaladora marcada pela dedicatória de Zack de La Rocha a José Saramago.
A cidade parou para (re)ver os Rage, onze anos depois de terem feito tremer a terra pela primeira vez em Algés num Super Bock Super Rock demasiado distante da Internet como a conhecemos para ser recordado em histórias e imagens pelos motores de busca. Foram recebidos em apoteose por uma plateia consciente da transcendência do acontecimento, galvanizada pelo efeito das bombas-relógio espalhadas ao longo dos anos 90, e já a sentir esse tempo a cair pelos bolsos rotos das Levi’s 501 gastas de tanto servirem de clube das chaves. Aquela forma de espalhar combustível politizado tinha-se perdido. Zack De La Rocha, Tom Morello, Tim Commerford e Brad Wilk eram os últimos bastiōes do agit-rock e ainda que fosse o vocalista o líder da milícia, só em conjunto fazia sentido erguer aquelas bandeiras anti-capitalistas.
“Minar o sistema por dentro”, costumava ser a justificação de Tom Morello, o porta-voz de um grupo com tudo a declarar nas cançōes e pouco a mostrar para cá desse muro, sobre a aparente contradição entre ser contra e ser poder quando assinaram pela Sony. Só precisávamos disso - como se fosse pouco. O concerto começou com sirenes em sinal de ajuntamento. A entrega foi catártica, a recepção extasiante. Descargas eléctricas geradoras de rodas punk, casacos pelos ares, camisas rasgadas e litros de cerveja entornada. Uma pressentida explosão colectiva como já era incomum assistir-se e mais rara se tornou com o tempo, sobretudo em festivais desta dimensão, cada vez mais orientados para uma unanimidade pop divorciada de manifestaçōes radicais, potenciais catalisadoras de agitação e divergência.
De Bombtrack a Know Your Enemy, Bullet In The Head, Guerilla Radio e Sleep Now In The Fire, não nos faltou nada para matar a fome de revolução. Estrategicamente guardado para o final, Killing In The Name foi o cocktail molotov no topo da explosão. Ninguém foi para casa sossegado. mas manda a memória reconhecer que foi o poder estrondoso da música dos RATM, em princípio de época de revolta dos anos 90, a aglutinar 40 mil pessoas de diferentes ideias e convicçōes, e não o contexto político. A crise financeira aconteceria dois meses depois, em setembro, nos EUA a antecipar a intervenção da troika em países europeus mais frágeis como Portugal e a Grécia, com efeitos devastadores na vida das pessoas.
E depois? Os RATM continuaram a defender o rock de combate em festivais de grande dimensão pelos EUA, América Latina e Europa até 2011. Nessa altura, foi o mesmo Brad Wilk a anunciar novo interregno. E ficou um vazio ensurdecedor (vamos esquecer que Morello, Wilk e Commerford mimetizaram os RATM nos Prophets of Rage com Chuck D dos Public Enemy). Salto no tempo até julho de 2022 para o primeiro concerto em onze anos no Wiscosin. 24 meses depois do início previsto para a Public Service Announcement Tour, adiada pela pandemia. O mesmo gangue de quatro, o combustível do passado, mas desta. vez com modernos ecrãs vídeo para toda a gente ver, filmar e levar para casa. À segunda noite, a idade pesou sobre Zack De La Rocha e 95% do tendão ficou destruído. Incitar sentado ao motim foi a solução mas não resultou. A 11 de agosto, todas as datas estavam canceladas e em outubro de 2022, o ano seguinte caía também. Consta que Portugal faria parte da rota europeia. Uma pena. Como nunca houve estúdio no reencontro, tudo indica ser o fim.
No vídeo de Sleep Now Into The Fire, gravado nas escadas da Bolsa de Nova Iorque, o realizador Michael Moore (quem mais?) deixou apenas uma indicação: “aconteça o que acontecer, continuem a tocar”. Havia razōes para a advertência. Não só nåo eram permitidas filmagens no exterior de Wall Street durante a semana, como não tinha sido pedida licença de ruído. Sem surpresa, a rodagem do vídeo, em janeiro de 2000, atraiu centenas de populares. Morello, que acabou detido, e um grupo de civis tentaram invadir o edifício da Bolsa. Conseguiram passar a primeira porta mas foram bloqueados. Ainda assim, o dia estava ganho quando, devido a esse acto, a Bolsa fechou entre as 14:52 e as 15:15.
Há mentiras convenientes que se tornam verdades falíveis. Quando se afirma que os anos 90 foram de dormência política, as Bikini Kill e os Public Enemy votam contra mas a haver um Secretário-Geral eram os Rage Against The Machine e um hino Killing In The Name. Enquanto o desassossego de Nirvana, Soundgarden ou Nine Inch Nails tinha o niilismo individual como causa e a neurose colectiva como consequência, Zack de La Rocha sempre escreveu crónicas de guerra encharcadas em rebentamentos sónicos. A influência do rap de Los Angeles (NWA), lavrada sobre os scratches de guitarra, encontrava numa robusta secção rítmica, herdeira dos Led Zepplin, a trincheira ideal. Os RATM não eram uma ilha mas o arquipélago tinha pouca extensão.
O protesto era desconfortável. Implicava ruptura com a norma, enfrentar a autoridade e risco para a protecção pessoal. Não ficava bem na fotografia mas foi devido a essa postura corajosa e militante que os RATM simbolizaram o rock de combate em tempo de aparente moderação global, depois da queda do Muro de Berlim, da guerra no Iraque, da conflituosa separação da ex-Jugoslávia, e durante a prosperidade ilusória das economias ocidentais.
Como quase sempre sucede com as utopias bem sucedidas, a passagem do tempo não só não desgastou os RATM como o quadro de polarização recentrou os cânticos de protesto. Donald Trump, o caso George Floyd e o avanço das extremas-direitas no mundo foram lenha para a fogueira. Terá sido por isso que voltaram? A projecção nos ecrãs vídeo, a novidade da digressão abortadas, de manifestos como “Abort The Supreme Court” diz que sim. Em trinta anos, talvez o inimigo nunca tenha sido tão nítido, opulento e asqueroso.
Em 2020, Tom Morello respondeu um fã que atacou a banda no Twitter ao descobrir convicçōes e ideais entre as cançōes. “A música é o meu santuário e a última coisa que quero ouvir são tretas políticas. Para mim, deixaram de existir”, Essa é a meia-lua do ateísmo política, da indiferença e do laxismo - que nem do activismo de sofá é. Depois há a outra. São a banda favorita de Olivia Rodrigo, um fenómeno no TikTok e um símbolo de insurgência para a geração Z. Quer Killing In The Name sirva de legenda a mais um dia no escritório do exército israelita, quer People of the Sun ilustre, por lapso, um dia de verão azul, a história dos RATM continua para além do tempo e do mito. É uma legenda viva. As colunas militares continuam a avançar, os justos a morrer e a máquina a derrotar-nos.