É verdade. Quando Wild God dói, o corpo ainda é assombrado por fantasmas mas é um disco que abre janelas quando Skeleton Tree, Ghosteen e Carnage (assinado com Warren Ellis e sem os Bad Seeds) trancavam portas. Aceitar a claridade, como trago de esperança, tal como deixam escapar os primeiros minutos de Song of The Lake - uma descendente da clássica Ship Song. Não é um álbum esfuziante nem radioso como algumas leituras mais emotivas podem sugerir. É um esforço pessoal de coexistência com a perda e a culpa que usa a dor para comunicar e galvanizar. Do íntimo fragilizado para o arrebatamento colectivo - o desígnio de Nick Cave sobretudo depois da morte do filho Arthur, de 14 anos, em 2015.
O ciclo profano de Cave terminara com os Grinderman, central eléctrica usada como laboratório para a reinvenção dos Bad Seeds. Há mais de dez anos, o notável Push The Sky Away anunciava uma nova fase. Já sem Blixa Bargeld nem Mick Harvey, e agora com Warren Ellis como braço direito. Uma extensão musical da personalidade metódica e impermanente de Cave. Desde então, Wild God é o álbum com mais reminiscências do passado remoto, apesar de nunca ter havido um Nick Cave e o seu oposto. Houve sim fases distintas de vida traduzidos em transformaçōes artísticas. É também um vasto exercício de auto-citação - menos imaginativo, por isso -, repleto de coros catedráticos, palavras contadas e predominância de piano e guitarras acústicas Marcas da liturgia recente de Cave, agravadas em Wild God. Enquanto Ghosteen e Carnage eram radicamente experimentalistas, desta vez as cançōes soam naturais e familiares. Até quando introduzem um Auto-Tune emanado de James Blake em O Wow. E agora puritanos?
Talvez seja uma intenção deliberada de falar por uma voz colectiva, como aliás vem expondo sem nunca o declarar com essa certreza. Na exímia observação do mundo que o exalta como farol de rara lucidez e equilíbrio no orfeu The Red Hand Files, Cave tem a plena consciência do efeito dos seus gestos. De que os grandes pilares da cultura pop/rock do Séc. XX estão quase todos autopsiados, do vazio político de referências e da privação de um projecto de futuro para a sociedade. Mas também dispōe de uma fé inabalável quando o depósito de esperança está na reserva. O retrocesso civilizacional é drástico. Cave tem a percepção desses violentos despertares e de que o fogo combatido com fogo só queima mais.
Já não age como um incendiário, mas como um bombeiro. Salvífico e agregador. Propriedades que, como poucos nos tempos modernos, o acercam da unanimidade. Alguém que, como os romancistas, não corre contra o tempo, saboreia-o. E Wild God reflecte-o na cúpula sonora. Um álbum com resultados terapêuticos garantidos no alívio da dor, mas menos audaz que os seus antecessores. Enquanto o triângulo Skeleton Tree, Ghosteen e Carnage estava entre a música mais estimulante da última década - assombrosa, comovente, triturante - Wild God sente-se mais atraído pela psicoterapia colectiva do que pela intenção de ser estudado em história de arte.
Ou talvez venha a sê-lo, mas por razōes emocionais. Sermos uns com os outros pode tornar-nos melhores, mais compreensivos e “empáticos”, como agora é voga dizer-se quando o assunto é humanidade solidária, mas pode ser uma prisão. Em Wild God, Cave não se esqueceu de sublimar o trauma mas subiu-lhe as defesas para que cada um se pudesse relacionar com a dor e apoderar-se dela para a sentir nas vísceras. As cançōes seguem-lhe a cartilha e, sem se destituirem de identidade ou propósito, perdem parte do poder transcendente das suas mais próximas no tempo. Não há milagres: em épocas de fogos, o risco é inflamável.
Seefeel - Everything Squared
Desde 2011 que os Seefeel e o substantivo novo não se cruzavam. É como se os ponteiros digitais tivessem parado, mas não se trata de um retrocesso. Antes de uma suspensão do tempo reivindicativa dos motivos basilares de Mark Clifford e Sarah Peacock. Música de ambientes que não é ambiental, atenta ao detalhe e tão preenchida por silêncios como necessitada apenas e só do elementar para ser merecida. Everything Squared soa aos Seefeel de sempre, subtis e descritivos, revistos na antologia Rupt and Flex (1994-96), de há três anos, ou seja não se parecem com nada actual. E só isso já é argumento de sobra para aceitar a entrada na válvula escapista de Everything Squared.
Jon Hopkins - Ritual
Ritual é assumido como um contraponto ao anterior Music For Psychedelic Therapy. Líquido, estelar como Jean Michel Jarre e caleidoscópico como Vangelis. Quem diria que dez anos depois do clássico instantâneo Immunity, o multi-sensorialismo de Hopkins se iria voltar para a transcendência espiritual? Poderíamos falar de mestres da filosofia sonora como Brian Eno, com quem trabalhou, ou dos Tangerine Dream. Ritual foi desenhado como uma peça única para superar limites formais e desbloquear portais interiores - o braindance cunhado por Aphex Twin. A velocidade não é de viagem alucinante mas nem por isso deixa de expandir canais e perscutar o invisível.
Laurie Anderson - Amelia
A Superman de Amelia é a pioneira da aviação Amélia Earhart, em quem Laurie Anderson projecta paralelismos e perplexidades sobre o mundo. Os diários da aviadora são documentados em micro-contos sonoros, mais falados do que cantados, em tapeçaria livre de jazz e electrónica. Não restam dúvidas, é Laurie Anderson a ser Laurie Anderson ainda que os voos mais altos de Amelia tenham Anohni na co-pilotagem.
Doechii - Alligator Bites Never Heal
Não é por acaso que um no single central de Alligator Bites Never Heal, Doechii clama pelo Boom Bap. A estreia em formato longo da rapper é uma mixtape à maneira dos clássicos. De coração aberto, versos provocadores, corajosos e ágeis, como se Nas voltasse a ter vinte anos e reencarnasse com o sarcasmo de Kendrick Lamar. Doechii podia ter sido mais económica no alinhamento mas este tipo de rap contundente e verdadeiro já é tão incomum e tão bem defendido que se perdoa o excesso e se gratifica a verborragia.
Duster - In Dreams
A fantasia dos Duster é conhecida. Entre 1997 e 2000, foram praticantes de rock lisérgico e abstracionista, da mesma safra dos Codeine, Low, Red House Painters e Galaxie 500, com relativo reconhecimento. A morte do fundador da editora Up Records, para a qual gravavam, relegou-os para os escombros e dali não sairam até o estudante do ensino superior Mike Hagerty ouvir Stratosphere e deixar-se fascinar. Do quase-anonimato, os Duster saltavam para a mitologia. O entusiasmo inflaccionou o preço dos discos, para frustração da banda, e o boca-a-boca conduziu ao reencontro. Regressar tornou-se inevitáel. O álbum homónimo de 2019 e Together de 2022 reactivaram os Duster e reintroduziram-nos - se hashtags como slowcore e shoegaze despertam um fascínio de pertença contra-cultural no TikTok, deve-se também a eles. Sem aviso, chega In Dreams. Música com cheiro a terra queimada que só podia arder no fogo lento dos Duster, monolítico e suspensivo, com as razōes genuínas de ser que distinguem os originais das cópias Xerox.
Dorothy Carter - Troubador
Depois de Wailee Wailee, no ano passado, a primeira reedição de Troubador transporta-nos para a estreia trovadoresca de Dorothy Carter. Um livro de cançōes das culturas apalache, judia, francesa e celta com uma leitura incomum muito além das tradiçōes sem precisar de as insultar, presciente da freak folk e de alguns movimentos new age, culturais e sociais, posteriores. Música com muitos mundos quando as tradiçōes pesavam menires e o acesso a outras correntes era limitado.
A União Soviética foi uma potência da pop sintetizada mas esta colecção da Ostinato não se concentra numa União ou nação. O centro de gravidade de Synthesizing the Silk Roads… é uma só fábrica de prensagem de vinil, fundada na capital do Uzbequistão por um grupo de especialistas em tecnologia de gravação que tinham sido evacuados das linhas da frente soviéticas. O disco reúne canções gravadas entre meados de 70 e o início dos anos 1990, extraídas do stock excedente prensado na fábrica, bem como algumas gravaçōes televisivas. A atmosfera não é muito distante da que se vivia em França, por exemplo com os Space, mas as flautas e as guitarras particularizam uma estética uzbeque com notas do Médio Oriente. A escavação traz pérolas como Lola, Sen Qaidan Bilasan, Radost e Ya Zdala Tebya à superfície. Brilhante.
Para quem como eu, só sabe ouvir e avaliar música de forma meramente emocional, as tuas críticas são sempre uma lufada de um ar diferente… e que me agrada.
Seja como for Wild God é, para já, o album do meu ano.