Como Björk no período de afirmação na oligarquia da indústria, entre Debut (1993) e Vespertine (2001), a sofistipop de FKA Twigs sempre privilegiou o processo sobre consequência. De tempos a tempos, há personagens que atiram o barro à parede e criam novos vínculos entre vanguarda e universalismo, e desse modo fazem o mundo avançar.
A geração de FKA Twigs (Burial, James Blake, xx, Disclosure, Mount Kimbie, SBTRKT) gozou do privilégio de uma roda alimentar completa - produção, comunicação e distribuição ao dispor - e um mundo novo à espera de ser moldado. Pouco mais de uma década depois de se ter projectado como figura central de um mundo à parte, a digitalização da pop é um facto consumado, mas de tanto bater desgastou-se em modelos e padrōes de repetição, traídos pelo afunilamento da mesma democratização que a desencarcerara dos vícios de controlo da grande indústria.
No presciente LP1 (2014), Twigs inseminava uma transumância, dotada de fragilidade feminina, teatralização e progresso tecnológico. Não estava só. Dois anos antres, o quimérico Visions de Grimes já soava a algo nunca antes ouvido mas em FKA Twigs o salto no desconhecido era comovente e harmonioso entre a escolha cientistas visionários de laboratório, e as incontornáveis reminiscências com o trip-hop. A conexão com Massive Attack ou Tricky não era apenas estética, era filosófico. O desejo de derrubar barreiras, propiciado por novas linguagens tecnológicas comungava-se. O futuro deu-lhe razão. Arca, Sophie e Sevdaliza testemunharam-no.
No notável Magdalene (2019), encontrava a paz perfeita entre antropocentrismo e transformação, perdido na mixtape Caprisongs (2022) para um culto da celebridade que, percebeu-se ao longo da rota, e não apenas no romance traumático com Robert Pattinson, também a contagiou - apesar da hipersensível Tears In The Club se deixar cair nos braços de The Weeknd.
Para onde aponta o caleidoscópio de Eusexua? O corpo está no centro da pista como uma tela. A noite é uma metáfora de perdição e busca pelo incógnito. Em Drums of Death, produzida por Koreless, o futurismo é plausível mas é dos anos 90 da cultura rave que extrai a matéria-prima para moldar em ensaio pop para um mundo admirável por inventar.
O ideal de metamorfose persiste, mas o clima severo altera as condiçōes atmosféricas. Em tempos politicamente atomizados, pensar além do imediato é um ato de coragem e resistência ao imposto. Quase tudo em Eusexua remete para uma ideia de retrofuturo. Em Praga e Berlim, Twigs aventurou-se na cultura rave reactivida pela filosofia harder, better, faster, stronger - a pressa de viver no limite antes que o tempo se esgote.
As profecias realizadas por Madonna no clássico Ray of Light (1998), produzido pelo filho do acid house William Orbit, saltam de trampolim para Girl Feels Good e Room Of Fools enquanto as linhas house perfeitas dos anos 90 desenham Perfect Stranger, mas nem Eusexua perde as camadas metalizadas e a cenografia sombria, transversais aos episódios anteriores, nem Twigs abdica da vulnerabilidade crónica e erotização emanada da cultura r&b.
Eusexua projecta ambiguidades entre o estado físico e transcendência mas a sua grande potência está na exploração dos labirintos do prazer e do hedonismo sensorial. Hoje à noite, não há horas para chegar. Amanhã logo se vê como está o tempo.
MALVA - poros
Escorrem dores da transparência de poros. As cançōes declaram descrença e nascem como relâmpago silencioso da necessidade de reagir à desolação. MALVA não se contém na sinceridade quando exterioriza "estar bem já não é suposto/é sobrenatural". O modelo de voz e guitarra é radiográfico. Filtra artifícios e rejeita máscaras. Em poros, essa verdade está bem, obrigado. Depois de se ter revelado na dupla redoma e de se estreado a solo com o promissor vens ou ficas, expande fronteiras sem transpor os limites. O crescimento vem da amizade traduzida em comunhão musical com Mimi Froes, Miguel Mâroco, Luís Duarte Almeida e Francisco Fontes. É em fera - duas vozes em uma só com Bia Maria - que nos sentimos pequeninos de tanta humanidade. E ela sabe-o em manada. "Amigos são sinal de fé no meu frágil coração".
Mogwai - The Bad Fire
Pedir-lhes que se reinventassem era demais, mas os Mogwai rejeitam a mecanização. Como um sistema operativo controlado pela mão humana, trazem máquinas para a massa sónica deambulante, como a coluna de sintetizadores à Daft Punk em autoestrada à Kraftwerk de God Gets You Back, o Vocoder-siri de Fanzine Made of Flesh e de Lion Rumpis, a par das rotinas de guitarras picadas de Pale Vegan Hip Pain, da explosão de lava de If You Find This World Bad, You Should See Some Of The Others, ou do fim de filme de Fact Boy. Uma aconchegante descida ao Inferno.
Studio - West Coast (reedição)
Data de 2006, mas há vinte anos já soava a reencontro com um tempo perdido. Se ninguém nos informar e fecharmos os olhos, o fantasma desgrenhado de Robert Smith sai da caverna em Out There e em West Side. A lua de mel imaginada dos Cure nas Baleares é um exercício metódico de estúdio dos suecos Dan Lissvik e Rasmus Hägg, guiado por um baixo pulsante e guitarras fantasistas. Música quente de autor com as antenas viradas para sul que embora invoque a repetição dos Can e o romantismo dos Durutti Column, germina da inocência pessoal e da descoberta desse arquivo fabuloso e o auto-reconhecimento da dupla enquanto estudava artes na faculdade. As semelhaças pontuais entre cromossomas de West Side e Why Can't I Be You, dos Cure, que se tornam evidentes com os New Order de Technique ao longo de todo o álbum, maximizam-se para a translucidez de longas remisturas espaciais - as mixtapes de época foram uma das matérias estudadas - que não reivindica para West Coast uma vida própria mas vale mais do que um simulacro.
Diogo - Saudade das Raves a que Não Fui...
Depois de Eu Adoro Os Meus Amigos, Diogo volta a fazer estragos. Saudade das Raves a que Não Fui... invoca as memórias fantasiadas dos armazéns onde o novo punk nasceu na madrugada dos 90, em quatro carregamentos de moniçōes hardcore, jungle e break. A potência movedora de Break It e Londres Chama recambia para os Prodigy alucinantes de Experience. E a revolução acontece enquanto os outros dormem.
Rob Mazurek - Nestor's Nest
Tropicalismo modular? Rob Mazurek congrega field recordings, enxurradas de sintetizadores e um corpo jazzístico livre, preenchido por trompetes com a veia de Jon Hassell em Nestor’s Nest. Como se Aphex Twin se fundisse com Sun Ra numa floresta. Fruta que cai da árvore para a boca com frescura.
Green Cosmos - Abendmusiken (reedição)
A placidez meditativa de Abendmusiken, plena de kalimbas e saxofones pacientes, encaixava-se no catálogo da Gondwana de Matthew Halsall. Acontece que o filho único dos alemães Green Cosmos nasceu em 1983. Tempo e espaço conduzem a acção com moderação e permeabilidade a rasgos pontuais de caos.
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