Um cinema aos pulos com adrenalina de concerto e palmas no fim, pessoas de pé a dançar em êxtase, oitavas a subir e uma inveja tremenda de não termos sido agraciados pela visita da Renaissance Tour a Portugal. Porquê? Fica a ideia que terá sido por motivos técnicos já que os braços da digressão esticaram até Barcelona, no último 8 de junho. Para se ter uma ideia da opulência da produção, enquanto cada espectáculo acontecia, dois outros estavam a caminho das cidades seguintes, a fim de serem montados em tempo útil. O que a terá impedido de galopar até cá? Só os promotores saberão a resposta, mas depois de termos visto o filme a sensação de perda é monumental.
A primeira digressão de Beyoncé desde 2017 foi uma produção colossal, preparada ao detalhe ao longo de quatro anos, com telas feitas à mão, cenários em constante mutação, entre o hiperrealismo e a utopia digital, e um catálogo fabuloso de singles magnânimos como Crazy In Love e Run The World (Girls), viagens à inocêndia da Destiny’s Child em Dangerously in Love e, claro, o hedonista e luxuoso Renaissance não apenas como argumento promocional, mas como nervo conceptual.
Talvez seja importante recordar a trajectória de Beyoncé de artista pop de indústria resistente à fabricação até aos anos do Louvre - os últimos dez. Se o “álbum negro”, editado sem prévio faz agora uma década, e Lemonade reivindicavam uma black excelence, liderada por figuras como Beyoncé, Kanye West, Kendrick Lamar ou Rihanna, eleitas para o posto de comando da cultura popular - música, moda, comunicação -, através de uma sempre difícil conciliação entre exigência artística, popularidade e influência, Renaissance revisita uma época de celebração da música house e de subculturas como o Ballroom em que a festa nada mais é que um reparo da dor e uma reacção ao preconceito. Às vezes, os caminhos para trás e para a frente vão ter ao mesmo sítio.
No desfile Chanel de Heated, Beyoncé menciona um Uncle Johnny made my dress. É uma figura crucial no enredo de Renaissance. O responsável por lhe ter introduzido o house e por tê-la feito despertar para a marginalização da comunidade queer era um homem gay negro, amigo da mãe Tina. Foi ele criador do vestido do baile de finalistas de Beyoncé. O reconhecido da importância de figuras como a do tio Johnny não é apenas um gesto sincero de gratidão. É Beyoncé a dissolver a divindade e a comportar-se como ser humano preocupado e interessado na leitura da história para compreender o presente colectivo a partir de uma memória pessoal.
A rainha desce dos aposentos com habilidade e inteligência. Renaissance Tour é dela mas não é só sobre ela. O olhar da lente aponta intencionalmente para os marginalizados. Os obsesos, as excêntricas, os excomungados e as desajustadas. Escolha essa que se estende à vasta equipa que a acompanha. Das bailarinas aos músicos ou produção, quase todos parecem escolhidos a dedo. Ou a olho, como a dançarina viralizado através de um vídeo em que perde a peruca após uma acrobacia e, ainda assim, continua como se nada fosse. “Contratei-a no dia seguinte”, afirma Beyoncé em modo comandante das tropas.
É um boletim metereológico da estratosfera pop. O controlo da narrativa ainda lhe pertence mas a história mas já não é apenas sobre ela. Nem basta incluir os fãs através de depoimentos - algo com que o filme se preocupa. Agora, eles são a história. Cada ecrã de telemóvel não filma apenas Beyoncé e o seu esquadrão do amor. Conta a história particular de cada um dos “criadores”. E aí, pode dizer-se que hoje a música é sobretudo um meio, ainda assim determinante para a afirmação do indivíduo quando no passado era um fim em si mesmo. Os tempos mudaram e o algodão pop não mente.
A hierarquia vertical do artista/fã dissolve-se num princípio de espectador-interveniente que gera tantas realidades quantas as histórias publicadas. A defesa intransigente da libertação individual tem neste efeito multiplicador do “eu” a rede perfeita de partilha. Os rituais colectivos são agora uma soma de micro-realidades em que cada um constrói a sua narrativa. “Passei tanto tempo a querer agradar a todos. Agora, não quero saber. Aos 42 sou finalmente livre”, confessa Beyoncé. A crença no individualismo absoluto é própria da democracia liberal. Não foi assim que a cultura queer se salvou mas quem disse que Beyoncé era um caso de coerência? Dar e receber é a matemática aplicada da pop e nem a descida do pedestal legitima o défice de atençåo.
Renaissance: A Film by Beyoncé não é apenas um espectáculo de arte total. Nem somente um filme-concerto. Ou um documentário de bastidores sobre o complexo processo de implantação da Renaissance Tour - “a minha parte favorita”, confessa - com vídeos verticais sobre a intimidade de Beyoncé. É um exame de clínica geral à artista dominadora, à empresária racional e à mãe protectora. E a partir desses diferentes papéis, uma radiografia do estado actual da pop: individual, emocional, terrena e contraditória. Talvez a incoerência seja a mais fascinante de todas as características por onde nos podemos ver ao espelho através do olhar controlador da artista-realizadora.
A história faz questão de nos demonstrar que cada detalhe passa por ela. Beyoncé confessa o fascínio pelas possibilidades da iluminação e quando se poderia pensar que quanto mais altas as luzes, maior a temperatura, pede o inverso. Menos luz para não cegar a vista e desviar o foco. É uma mulher atenta aos pormenores, com voz própria, participativa nas reuniōes, e dialogante com equipa mas sem abdicar da última palavra. Se a ideia era desmontar a robótica das actrizes pop, o filme faz pleno uso desse poder mas o protótipo da artista-marioneta tem vindo a diluir-se. Graças também a ela.
Sem acenar com a bandeira, o feminismo é causa e consequência. Por uma necessidade de afirmar a importância de Beyoncé em todo o processo - em palco e fora dele. Desde a conceptualização da digressão até aos últimos segundos de Summer Renaissance, já depois de ter descido do cavalo prateado recriado a partir da capa do álbm. Nota-se no papel secundário atribuído a Jay-Z, limitado a ser um observador privilegiado, conselheiro silencioso e pai discreto. Todas as câmaras olham para Beyoncé. Até a do telemóvel do marido.