A vertigem dos factos, as clivagens políticas e o ambiente de permanente conflito talvez nos tenham roubado o prazer e a ilusão mas os últimos anos foram um verdadeiro banquete para um melómano. Quem, como eu, cresceu colado à rádio, de cassete no leitor, à espera do novo single dos Mão Morta, das escolhas do painel nocturno da Antena 3, a roubar o pequeno-almoço no bar da escola para comprar o Blitz à terça ou a sair de casa com o estômago ainda por forrar ao sábado de manhã para ir à padaria comprar pão quente e, com os trocos contados, passar na papelaria de esquina para comprar o Diário de Notícias sabe o quão alta era a cerca. A dificuldade tornava as coisas especiais. A música era e sempre foi determinante nesse complexo processo de busca pela identidade, de conexão entre o eu e o nós, que nem sequer acaba na adolescência. Na melhor das possibilidades, é perene.
Se viajarmos a esse tempo, pré-streaming e pré-MP3, de dependência material do objecto, tudo ficou mais próximo e acessível: a música, a informação, a opinião e a partilha. O adolescente de 14 anos que em 1997 descobriu o drum’n’bass através da tinta do Blitz, e tentava localizar esses ritmos quebradiços no mapa radiofónico nocturno, enquanto fazia scroll no FM, nem nos sonhos mais húmidos poderia imaginar um dia receber na caixa digital de correio tanta música nova que nem todas as vidas eternas seriam suficientes para poder ouvi-la em condiçōes de calma e silêncio. Para quem não tinha autorização para andar sozinho à noite na rua, muito menos atravessar o rio depois das 20h00, a imaginação era a chave inglesa da fantasia. Como o acesso à informação era guarnecido, tudo o que não estava à vista habitava num quarto escuro de arrojada atracção pelo desconhecido.
Tudo mudou. Bastante para melhor. Sim, éramos felizes e sabíamos, embora talvez suspeitassemos ser eterno apenas enquanto durasse. Mais criação, acesso e comunicação. Novas subculturas, tendências e correntes. Maior pluralidade, paridade e mobilidade pop social - que não é, nunca foi, nunca será um mundo perfeito. Mas há algo que não se alterou: a importância do jornalismo musical. Subestimado pela abertura dos portōes, e pela falsa ideia de que, no escuro, todos temos visão raio X. Por tudo isso, fundamental para distinguir a identidade da réplica, separar o ouro do pechisbeque, localizar a próxima mina, tapar os ouvidos a cåmaras de eco, confrontar a indústria e os poderes corporativos. Porque o jornalismo, musical ou outro, existe para fazer perguntas e não para aceitar qualquer resposta. A diferença entre ser filtro ou passador.
Quanto mais informação, maior necessidade de a peneirar. Que no caso da música, é à partida traçar uma linha entre gosto e conhecimento. Toda a crítica é subjectiva. Opinião e neutralidade são incompatíveis na mesma frase. O papel da crítica não é apenas racionalizar as emoçōes mas também contextualizar os cromossomas de quem assina com o contexto envolvente - conciliar o particular com o universal. Porque uma coisa é sentir a música na pele - uma combustão natural à condição humana -, mas outra muito diferente é traduzi-la por ideias, compreendendo-a nas suas diferentes camadas. E essa é uma tarefa permanentemente inacabada que leva anos, décadas, uma vida, porque tal como nós, a música é uma arte em movimento perpétuo que, pelo seu impacto, é uma fotografia do mundo mas também um motivo dessa imagem em movimento.
Às vezes, é preciso voltar à casa de partida. O papel do jornalismo musical enquanto construtor do sentido crítico, e da crítica enquanto prática desse pensamento, não é gostar, é reflectir. O papel que lhe é atribuído não é o de pensar por nós, mas antes dar-nos ferramentas para que nós, enquanto seres pensantes, possamos formar a nossa visão não apenas sobre a música, enquanto fenómeno artístico, mas sobre o mundo. E desse ponto de vista, o jornalismo musical tem uma cronologia de contra-cultura que se confunde com acontecimentos sociopolíticos incontornáveis: a rebeldia pop e a luta pelos direitos civis dos negros nos anos 60, a música de protesto contra as ditaduras, o punk e a precariedade, o pós-punk anti-liberalismo Thatcheriano, o rap e os guetos, o rock de Seattle e o sono americano, a revolução rave e a urgência de libertação colectiva, a globalização do ritmo e a emancipação de culturas periféricas, ou a mobilidade social espoletada pela música da rua são apenas exemplos.
A absorção da Pitchfork pela revista masculina GQ, ou melhor o emagrecimento da revista digital de música mais influente do século digital, transcende as suas paredes e é um prego no caixão do jornalismo musical e da arte quase perdida da crítica. Os danos colaterais são bem maiores que a redacção: dependência do algoritmo, perda acentuada de sentido crítico e o acelerar da contagem decrescente para o fim de um romantismo que alimentou a base da pirâmide emocional, isto é a melomania e toda a indústria de carinho associada, desde lojas especializadas a pequenas editoras, agentes, programadores ou salas, além de outros protagonistas como realizadores de vídeos, produtores, criadores de moda ou maquilhadores. Enquanto sector interdependente, quando umas das cartas cai todo o baralho se ressente.
Consta que a comunicação feita à equipa da Pitchfork pela responsável editorial Anna Wintour foi insensível. Sem surpresa, o ritmo editorial abrandou ao longo da última semana, Provavelmente, e como dizia Gabriel O Pensador, ainda é só o começo, porque a integração numa revista de testosterona masculina não antecipa nada de produtivo para uma revista que publicava quatro críticas diárias, da ubiquidade pop de Taylor Swift ao shoegaze coreano dos Parannoul, aos jogadores de beats da Príncipe. O volume editorial era importante pela diversidade. Ter Dua Lipa na mesma assoalhada crítica da PC Music, da Hyperdub ou de Fire-Toolz é derrubar fronteiras estéticas e económicas entre protagonistas e actores secundários, e dessa forma, combater o populismo crescente de que quem não sobe nas métricas está condenado a ser figurante - a armadilha da validação pelos números.
Há quem visse a Pitchfork apenas pela sua assinatura indie. Essa foi a primeira velocidade e aquela com que engrenou uma comunidade, captando os primeiros fluxos de trânsito digital, pré-redes sociais e streaming, mas esse era território fértil - branco, esclarecido e abastecido - e, por isso, de fácil captura da atenção quando o jornalismo publicado já fraquejava nas impressoras, a indústria musical fazia contas às perdas com a pirataria, e outros gigantes, das telecomunicaçōes à tecnologia, ainda viam na música um manicómio de loucos e sonhadores. Onde a influência da Pitchfork se pode medir de facto não é tanto por ter projectado os Arcade Fire ou os Vampire Weeknd mas antes em ter credibilizado e amplificado o hip hop, glorificando Kanye West, entronizando Kendrick Lamar, impulsionando Tyler The Creator, A$ap Rocky ou Future. Todos eles alargaram o impacto além do hip-hop e fizeram o movimento transcender essas fronteiras. Se isto não é democracia, o que é?
A notícia da Pitchfork não caiu como uma bomba na mesma semana em que o grupo da Global Media fez greve porque, embora muito afastados no atlas, ambos são vítimas do mesmo enfraquecimento dos ossos, causado pela descapitalização do jornalismo. As vendas, no caso do papel, diminuiram drasticamente. A publicidade transferiu-se para as redes sociais que, paradoxalmente, canibalizam diariamente os conteúdos jornalísticos. As assinaturas digitais não repōe as perdas e conteúdos exclusivos só pagam casas no OnlyFans ou quando se é um Salman Rushdie. A erosão do jornalismo, e o fim da crítica são parte de um mesmo cortejo fúnebre: a perda colectiva gritante de sentido crítico, e o agravamento do sistema nervoso das redes sociais na resposta a problemas complexos em 200 caracteres ou vídeos de 30 segundos. São boas notícias para a alienação e o populismo.