A crise da habitação criou uma nova canção de protesto?, pergunta o artigo do Observador, assinado por Luís Freitas Branco. O texto relaciona as manifestaçōes das últimas semanas com um grupo de cançōes preocupadas, desconfortáveis e verosímeis sobre uma das maiores crises sociais dos últimos anos. A questão é pertinente. Basta ver que o cântico dos protestos organizados pelo movimento Casa para Viver é o refrão de uma canção: “a paz, o pão, a habitação, saúde, educação” é o centro nevrálgico de Liberdade, proto-rap escrito por Sérgio Godinho para o álbum À Queima Roupa, de 1974, um dos hinos dos cravos e de futuras primaveras.
A Garota Não escreve “welcome monsieur, a casa é vossa/o mal dos outros não nos faz mossa/quem não aguenta a subida encosta/habitação é fractura exposta” em Não Sei o Que é que Fica, com Chullage, rapper que acaba de atirar mais lenha para o fogueira com o dilacerante Xei di Kor, e um dos principais agitadores das manifestaçōes desde o início do ano. Porque o problema do racismo é socioeconómico como o da habitação. “Aproveite enquanto a bolha/Está a inchar/Compre uma tenda/E ponha à venda/É pegar e largar/O inquilino vai ter que/Se habituar/Que agora mora onde/Calhar”, lamenta Eu.clides sobre os versos de Tota em Tê Menos 1.
Capicua escreveu uma letra fillet mignon para o rouco de Gisela João. Diz assim O Hostel da Mariquinhas: “Da recepção ao terraço/P'ro turista modernaço/A senha da internet é alfacinha/'Tuga é só um empregado atarefado/A servir a caipirinha/Sentei-me, pedi a lista do bistrô/E era tudo tão gourmet, que as sardinhas/Vinham em pão integral, sem glúten e sem sal/Montadas na vertical e com ervinhas”. Mais ríspidas, as irmãs Maria e Júlia Reis pegam na crise da habitação para entrar a pés juntos sobre instituiçōes: “Tudo pertence aos Cruzados/Opus Dei e já foi Maçónico/Achas que é democrático?/Nem sabes a missa à metade”. E há a música de intervenção 2.0 de Luís Varatojo, praticante de kung fu contestatário em Luta Livre, a comentar a perplexidade: “um T0 no Barreiro custa mais que um ordenado”.
Não foi a crise da habitação a provocar uma nova canção de protesto. Foram os problemas estruturais que já vêm de um pretérito imperfeito embelezado por jacarandás e disfarçado por negronis. A precariedade, os baixos salários e a falta de emprego qualificado não começaram nem na pandemia nem depois da invasão da Rússia. Por isso, contrariando o fado da inércia, as pessoas voltaram a sair à rua em dias de 30 graus, não para ir à praia, mas para lutar pelos seus direitos. Até o lugar ao sol está cada vez mais concessionado aos privados e o acesso público às praias condicionado pela cilindrada do apelido e pelo quilate do visto. O problema da habitação é uma das rupturas na conduta a provocar inundaçōes na via pública.
Nem este megafone reapareceu nos últimos meses, nem as dificuldades começaram em 2023. Vêm de trás. O desassossego e o grito. Nos últimos anos, a canção voltou a sair à rua e a fazer eco das desigualdades. Temas como o racismo, a desigualdade de género, ou a heteronormatividade saltaram para os microfones. A “nova canção de protesto” pode ter muitas vozes, formas musicais e discursos, de Dino D’Santiago aos Fado Bicha, Scúru Fitchádu, Batida, Chullage, Filipe Sambado, Luca Argel ou a inevitável Garota Não. Pode não ser panfletária nem precisar de palavras para expressar o descontentamento. O corpo pode ser político, como foi nos Buraka Som Sistema e é na Príncipe. Entre tantas notícias desagradáveis, desinformaçāo e radicalização, contar com a música para resistir é uma depressão animadora.
Historicamente, a música popular foi controlada pelas classes dominadoras, quer através das editoras, quer pelos meios de comunicação. E ainda é assim mas com o advento do digital, e o saltar para a linha de frente de vozes ressonantes das periferias, este ciclo alterou-se. Este fenómeno a juntar a um caldeirão de inflacçōes e políticas desprotectoras dos mais frágeis é gerador de uma tempestade perfeita.
No país musical do pós-25 de abril, a música de combate sempre existiu mas foi amansada pela melhoria geral da vida dos cidadãos. Isso está a mudar. A geração dos vinte anos é a primeira a ter como horizonte provável uma vida pior que a dos pais. Para estes, casa não é um direito, é uma miragem. A música é espelho e reflexo, porque por um lado expōe fracturas e por outro é fisioterapêutica na recuperação. Não sendo portadora de uma responsabilidade política tem o poder de intervir cirurgicamente sobre as mazelas com dignidade, beleza e esperança.