Tomara que os reptos da comunidade artística, nas ruas, nos palcos ou através de cartas abertas surtissem consequências na Ucrânia e em Gaza. Na impossibilidade de serem apresentados à mesa das negociaçōes , estes apelos ao presidente americano e às esferas políticas de influência são gestos muito simbólicos de solidariedade, mobilização e resistência. Incitam-nos a não desistir e a acreditar que o combate é justo e necessário. Podia ser qualquer um de nós a perder a vida ou a família, entre fogo cruzado. Não basta ter uma voz, há que saber usá-la. Pelos piores motivos, essa consciência regressou nos últimos anos.
Na excelente série recentemente exibida pela RTP2 Fight the Power: Como o Hip-Hop Mudou o Mundo, contada por Chuck D (Public Enemy) para a BBC, o terceiro episódio é dedicado à importância do hip-hop para a eleição de Obama e à presidência Obama para a afirmação do hip-hop enquanto bandeira cultural dos EUA, de importância comparável ao country. Enquanto a narrativa evolui da bala de prata do Yes We Can! para o mercúrio retrógrado do Make America Great Again, os interlocutores desiludem-se ao se aperceberem que nas asas do sonho americano de uma comunidade, representada pela figura de Obama, há uma aterragem turbulenta na sede do Capitólio. A descida à terra é a ressurreição da América Proibida, bem explícita no assassinato do adolescente negro Trayvon Martin, morto pelo segurança de um condomínio privado onde estivera com o pai a visitar a noiva deste. O tiroteiro mortal de 2012 reacendeu a discussão sobre racismo sistémico nos EUA.
Perto do fim do episódio, ouve-se um hino. “We Gon’be Alright”, exclama uma multidão. É o voo de Ícaro de Kendrick Lamar com as ruas na sola dos ténis. Um herói vulnerável, sem capa ou espada. Apenas versos para reparar a fé. O vídeo de Alright projecta um mundo a preto e branco, saturado de polícias, perseguiçōes e destruição. Enquanto se senta no topo de um semáforo, Kendrick é alvejado. Cai no solo mas termina com um sorriso. “Nigga, we gon' be alright” foi a mensagem de esperança transmitida por K.Dot quando a chama de Obama já se apagava e Donald Trump iniciava a pré-campanha destruidora que o elegeria o 45º presidente dos EUA. Resiste até hoje como um mantra, indiferente às alteraçōes do xadrez político. Vai ser bem precisa nos anos vindouros.
No belíssimo recém-nascido Only God Was Above Us, os Vampire Weekend escolheram a liturgia minimalista Hope para cessar o primeiro álbum em cinco anos. Tal como Alright de Kendrick Lamar, a canção move-se nos interstícios. Não idealiza, enfrenta a realidade. Assume a decepção como parte da ambiguidade. E serve-se da teatralidade de Ezra Koening para elevar o relato à categoria de arte. Hope fala sobre o exército americano, os conflitos armados e a morte dos justos, mas deixa um apelo de superação do luto colectivo. “I hope you let it go” é a última frase do refrão, repetida ao longo da canção e reiterada quatro vezes no final antes de uma longa sequência instrumental agir como um pano descendente da peça.
O gesto reparador de Hope não é um caso isolado. Na sua fragilidade e grandeza, o magnífico Bright Future de Adrianne Lenker é uma fonte luminosa acesa na bruma como uma vela. Talvez não seja desassossegado pelo desconforto político dos Vampire Weekend mas, em todo o caso, um acto de fé desta beleza tem consequências maiores do que a sua moldura artística. E é um sinal claro não de alienação mas da urgência em avançar para um novo ciclo de vida. Nick Cave apresentou o novo Wild Gold (ed. 30 de agosto) como “um disco complicado mas profunda e alegremente contagiante”, revelando ainda outros detalhes sobre o estado emocional captado pelas gravaçōes: “os álbuns reflectem o estado de espírito dos autores e músicos que os fizeram. Ouvindo-o, não sei. Acho que estávamos felizes”, adiantou.
Tão literal como Adrianne Lenker mas ainda mais brusca, Dua Lipa nomeou de Radical Optimism o próximo capítulo da fantasia retro-futurista. Nada de novo se pensarmos no paraíso disco hedonista de Future Nostalgia. Do sucessor deste com saída marcada para 3 de maio, diz ser a consequência de ter optado por navegar no caos com optimismo e graciosidade, absorvendo ainda a liberdade, confiança, honestidade e crueza dos anos 90. De forma explícita, Dua Lipa centra o prazer como um acto político de restituição da vontade, gozo e êxtase. Quanto maior é o poder de ruptura destas acçōes, mais perigosa é a sua consequência para os sistemas dominantes.
O papel da música popular não é o de apresentar programas políticos nem tampouco o de nos dar resposta às perplexidades diárias. Mas podemos esperar que nos interrogue, estimule e incite a corromper o desânimo. Nos últimos anos, a combatividade política foi restituída em diversas frentes, do anti-racismo às lutas pela igualdade de género, liberdade do corpo ou defesa do ambiente. Antes de ser uma revolução, tratou-se de uma devolução ao primado contra-cultural. Figuras como Billie Eilish ou bandas como os Idles captaram com perícia essa zona cinzenta entre o activismo e as palavras-chave da cultura pop digital. No magistral Apenas Miúdos, Patti Smith diferenciava-se do companheiro Robert Mapplethorpe na relação com a arte restauradora de Andy Warhol. “A obra dele reflectia uma cultura que eu queria evitar. Detestava a sopa e pouco sentia pela lata. Preferia um artista que transformasse o seu tempo, em vez de o espelhar”.