Há ano e meio, quando a pandemia deu por fim tréguas, fui ver os Idles ao Coliseu dos Recreios. O concerto foi avassalador e rico de observar enquanto o guitarrista Mark Bowen nadava sobre um mar de braços. O público era essencialmente masculino, vestido de ganga e com mais pinta de quem aprecia cerveja à sexta à noite do que praticar yoga em pós-laboral. Destes, quase toda as pessoas tinham mais de 30 anos. Estamos a falar dos Idles, aclamados na última meia-década desde o potente Brutalism. Não eram os Franz Ferdinand (vinte anos), os dEUS (vinte e cinco anos), os Blur (trinta anos), os Pixies (trinta e cinco anos) ou os Echo & The Bunnymen (quarenta anos). Era uma banda recente, que apesar da muralha sónica de aço, traz um guitarrista com um vestido cor-de-rosa, defende o feminismo, a imigração (My blood brother is an immigrant/A beautiful immigrant) e repele a violência. Tudo roses, nada de guns. Ou seja, um combo muito ligado à era das causas, próximo do activismo e sem grandes sinais de choque ou confronto, a não ser o conflito público com os Sleaford Mods e o vocalista da Fat White Family Lias Saoudi.
Para os Idles, o rock nem sequer é um fim em si. É o meio contundente de defesa de um discurso, tingido por caos ordenado e turbulência. São referência de um movimento, a faca de lâmina que cortou caminho para Fontaines D.C, Dry Cleaning e Yard Act poderem passar sem se cortarem nas silvas. Nada isto é suficiente para convencer um adolescente médio a ouvi-los em vez do eurovisivos Måneskin, ou a acreditar numa banda rock posterior aos Arctic Monkeys. Será o fim da história? Calma.
No eterno debate entre o esforço de Cristiano Ronaldo e o talento de Messi, como se CR não soubesse o que fazer à bola, e Messi não corresse, há algo que passou entre os perdigotos da discussão. Ambos estiveram no topo até muito tarde e mesmo agora que o fim se aproxima, estão muito longe da decadência. Os dois maratonistas mudaram o paradigma da idade no futebol de alta competição, enquanto a sociedade discutia a justeza das Bolas de Ouro. E hoje é normal ouvir dizer-se que “um futebolista com 30 anos ainda é novo” quando ex-jogadores à prova de lesão grave como Luís Figo começaram a ir para o banco aos 31/32 anos.
Que tem isto a ver com os dois parágrafos anteriores? Tudo. Durante décadas, a música popular viveu viciada nos traços de afirmação da adolescência: rebeldia, choque e imediatismo. O Clube dos 27 é o condomínio de luxo de um vasto cemitério de sonhos e desilusōes, representados por mitos involuntários do seu tempo, vítimas dos próprios ferros.. E o comportamento do público seguia este modelo sociocultural. Era raro ver-se alguém com mais de 40 anos num concerto ou com mais de 30 num festival. Hoje, fazem-se festivais para públicos-alvo mais avançados, como Vilar de Mouros, e programam-se noites a pensar em descrentes na actualidade. A nostalgia é um grande negócio, claro, porque fala para os ex-adolescentes, hoje gestores de recursos humanos, profissionais do marketing digital ou senhorios profissionais - a profissão que não existe mas alimenta muita gente -, potencialmente com bolsos mais fundos, mas a relação entre a música popular e a passagem do tempo não se esgota no sentido de oportunidade.
Até agora, o discurso corrente tem sido o da incapacidade do rock chegar às geraçōes nascentes, educadas a ouvir a modulação do auto-tune, o ritmo cardíaco da vídeo-dança ou os grandes refrães pop da inclusão. E é verdade, mas apenas uma parte dela. Há vida para além das grandes superfícies e ajuntamentos. Na música, como no futebol, a passagem do tempo é absorvida com naturalidade e é geradora de fenómenos imponderáveis. Sim, Dreams dos Fleetwood Mac, Running Up That Hill, de Kate Bush, Master of Puppets dos Metallica, e Never Let Me Down, dos Depeche Mode, são intemporais, mas quem adivinharia uma nova vida para estes clássicos em plataformas como o TikTok, séries como Stranger Things ou Last of Us?
A fragmentação faz dos êxitos pop actuais bolhas maiores de rebentação mais rápida, e, por isso menos transversais e duradouros no tempo. Por outro, estes fenómenos de tempo sem tempo que podem ser transmitidos de pais para filhos, através de playlists, séries, filmes ou aleatoriedades sem explicação aparente é uma máquina de regresso ao futuro. E se na percepção de um adolescente, o rock não existe depois dos Arctic Monkeys, a curiosidade por bandas como Nirvana, Guns N’Roses, AC/DC, Led Zeppelin, Sex Pistols, Doors ou Joy Division, só para citar as mais evidentes, parece ter ganho um novo impulso.
Nem só de deitados se fazem impérios. Ao ouvir o magnífico Tricot dos Mão Morta, o que fica é o mergulho no desconhecido. A hipótese de saltar em queda livre, no caso com o saxofonista Pedro Sousa, pelo prazer de atravessar o ar. E no fim, cair, porque o direito a falhar deve ser inalianável, mas cair de pé.
O novo álbum, editado sem grande promoção ou eco da imprensa, pode não ser um sinal dos tempos, mas é um sinal do tempo dos bracarenses. E de uma arte eléctrica que se pode dilatar, aceitando a passagem do tempo. O que foi não volta a ser mas o que será, será. E ainda que alguns adeptos possam continuar sedentos de sangue no asfalto e velocidade escaldante (ela está lá, mas é preciso procurá-la), estes são os mesmos Mão Morta de Mutantes S. 21 e Há Já Muito Tempo que Nesta Latrina o Ar se Tornou Irrespirável. Só que diferentes. É rock? Jazz? Free rock? Pouco importa. É um gesto auto-determinado que não pretende encaixar em nenhum outro tabuleiro se não o da vontade própria.
“Até por uma questão de sanidade nossa, fazemos o menos possível concertos de repertório [com temas antigos]. Quem fica a suspirar pela Budapeste, está no seu direito, mas não é isso que encontram nos Mão Morta atuais”, reconhecia Adolfo Luxúria Canibal em entrevista recente ao Expresso. Longevidade não tem de significar conformismo ou inércia. Tricot responde por uma necessidade constante de desinstalação e reinvenção, já manifestada em álbuns como Muller no Hotel Hessicher Hof, Maldoror e No Fim era o Frio. Porque tem de ser estranha essa forma de vida quando se passam as marcas da juventude?
Ao longo da última década, Nick Cave desarmou as cançōes de corrente eléctrica e entregou-se ao piano para exorcizar a dor, com a cumplicidade do mágico Warren Ellis. Bastaria revisitar o fabuloso The Boatman’s Call para reconhecer o Nick Cave actual e sem ânsia de juventude em 1997, mas os últimos anos são um manual de voo sem contra-relógio. A morte há-de aparecer para a escritura mas até lá, o tempo corre enquanto fica parado.
O fenómeno da música popular continua a ser adolescentocêntrico, por razōes compreensíveis, mas está a mudar. Juventude é mentalidade e a idade é apenas um número. Não há maior rebeldia do que ser livre. Sê-lo quando queremos é a suprema subversão dos padrōes.