A minha vida com Kurt Cobain
30 anos a tentar descodificar o mito para compreender o homem
Como escrever sobre Kurt Cobain sem decalcar visōes e importar perspectivas? Só através de um ponto de vista pessoal. Nasci em 1982, cresci numa Almada suburbana em mutação de cidade operária para urbe gregária. Quando os Nirvana explodiram, estava a chegar aos nove anos. Quando Kurt morreu a 5 de abril de 1994, todos os adolescentes vestiam blusōes de ganga, flanela e calças rasgadas. Calçavam All-Star trucidados e usavam mochilas da Monte Campo. Por baixo da camisa, um rosto anestesiado, um nome e um pregão. Kurt Cobain detestaria saber que se tinha tornado num modelo involuntário de farda escolar. O mito tomara conta do homem, a imagem desleixada da música angustiada e o capitalismo da rebeldia. Ícone generalizado até à sofreguidão e explorado até ao osso.
Três anos antes quando Smells Like Teen Spirit explodiu, conseguia sentir a energia vulcânica da canção e o porquê de tanta gente se relacionar com ela ao ponto de se tornar hino da juventude mas o desejo imberbe de ser diferente dos meus amigos e colegas retraía-me. Inconscientemente, o consenso sobre um gesto tão catártico causava-me desconfiança e não me permitia ver que para além do embevecimento geracional, o pretexto de Kurt era muito mais forte que o efeito dos Nirvana. Apesar de ter crescido a olhar para os estaleiros da Lisnave e para as chaminés da Siderurgia, o movimento grunge não me convencia como ouvinte nem me suscitava qualquer espírito de pertença. Anos de leitura depois, concluí por fim que o grunge nunca existiu e não passou de uma necessidade mediática de organizar a informação sobre a cultura da cidade de forma preguiçosa. Provavelmente na mesma altura em que descobri em Kurt Cobain um brilhante escritor de cançōes inteligentes, objectivas e vulneráveis, pujantes de duplos sentidos. A devoção era merecida e, ainda assim, talvez a sua humanidade poética não estivesse inteiramente traduzida.
Enquanto escrevo, penso o quanto Kurt Cobain haveria de odiar a sua caricatura e o quanto se sentia frustrado ao responsabilizar-se por ela. Ao contrário da forma como por vezes é representado, displicente e anémico, era alguém extremamente ambicioso. Enquanto a maioria das bandas do movimento alternativo de guitarras de final dos anos 80 (Mudhoney, Jesus Lizard) se contentava com o circuito independente, os Nirvana não queriam acartar amplificadores atrás das costas, dormir em carrinhas e tocar para vinte pessoas. Ambicionavam saltar para o domínio público. Desejavam ser grandes sem deixar de ser bons. Pelo menos Kurt projectava essa grandeza e tinha em Krist Novoselic um cúmplice fiel. Mas o melhor de dois mundos é muitas vezes uma encruzilhada que termina em beco sem saída.
No filme Montage of Heck, de Brett Morgen, realizador a quem foi permitido o acesso ao cofre privado de Kurt Cobain, a dada altura a mãe Wendy recebe a versão final de Nevermind, ainda quente do final das gravaçōes. “Oh meu deus! Tu não estás preparado para isto”, foi a reacção. O instinto maternal estava certo. O álbum seria a rampa para a eternidade e o princípio da queda livre. O tema da família em Kurt Cobain é quase sempre observado a partir do romance auto-destrutivo com Courtney Love, graficamente explícito no filme, mas vem muito de trás e tem no divórcio dos pais, aos nove anos, um episódio para a vida. Uma infância feliz transformou-se numa adolescência tumultuosa. O pai que prometera não voltar a casar-se desdisse a promessa. A segunda mulher do pau que o tratara como filho, relegou-o para suplente quando deu à luz. E a mãe era vítima de maus tratos do companheiro.
Kurt e Amy tiveram infâncias felizes. Depois vieram os divórcios. A perda de referências. As adolescências problemáticas. O eterno conflito da busca pela afirmação pessoal no encontro com o outro. A arte como catarse. O excesso como incapacidade de auto-controlo, libertação e dependência.
Montage of Heck e Amy, a controversa leitura visual sobre a vida de Amy Winehouse, não-autorizada pelos pais, estrearam na mesma altura. Muito mais é aquilo que os une, além dos 27 anos de vida, do que separa. Kurt e Amy viveram infâncias felizes. Depois vieram os divórcios. A perda de referências. As adolescências problemáticas. O eterno conflito da busca pela afirmação pessoal no encontro com o outro. A arte como catarse. O excesso como incapacidade de auto-controlo, libertação e dependência. Os Nirvana seriam possíveis sem estas tensōes? Provavelmente, não. E a Amy de Back To Black também não. Antes de se transformarem em ícones públicos, enfrentaram depressōes profundas. Kurt, por exemplo, foi diagnosticado com bipolaridade, e Winehouse com Borderline, uma variante mais agressiva e limítrofe da instabilidade emocional.
Terá Kurt Cobain sido vítima de uma adolescência sofrida? De uma ambição desmedida? De uma cidade onde é Inverno o ano inteiro? Da frustração em conciliar integridade e impacto? De um sistema que se preparava para o cuspir depois de o ter sugado? Sentir-se-ia incapaz de minar a indústria por dentro? Provavelmente, todas as hipóteses estão certas. Quando partiu, estava tão perdido como aqueles que o seguiam. Talvez sentisse que a sua caminhada chegara ao fim. Que a adoração era indicativa de isolamento. E que no soltar do gatilho restava a única salvação possível para não se despedaçar artisticamente.
Como os restantes vizinhos do clube dos 27, o estrelato pop foi efémero mas suficientemente constrangedor para se querer libertar dele como um preso de uma cela. Da omnipresença na MTV, das capas da Rolling Stone e de todas as revistas adolescentes. Quando deu por si, já era demasiado tarde. Em 1992, quando as manchetes eram dominadas pelos rumores de ser viciado em heroína, fingiu a sua morte em Reading ao entrar em palco numa cadeira de rodas empurrada pelo jornalista amigo da banda Jerry Thackray. Kurt parecia ter chegado ao limite das suas forças e estava ali perante o mundo disposto a ser crucificado. Quando se levantou da cadeira e os primeiros acordes de Breed irromperam-se, evidenciou uma das suas maiores qualidades: o sarcasmo.
O fascínio por símbolos como Kurt Cobain, Amy Winehouse, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin ou Ian Curtis está na inconclusão. Podemos projectar-nos neles como quisermos. No talento, rebeldia, fama, aclamação, contradição, incompreensão, fatalidade, medo, coragem, comparação ou confronto. Há um pouco de tudo neles e essa é a prova da sua grandeza, mas o que alimenta o fascínio ao longo de trinta anos é a dúvida e a não a certeza. Nas águas lamacentas do rio Wishkah (From the Muddy Banks of the Wishkah), onde chegou a viver como sem-abrigo depois de ter fugido de casa da mãe, o tecto era feito de pingos de chuva e todos os animais eram de estimação, descrevia na magnífica e dolente Something In The Way, o desconsolo foi o nosso asilo. Talvez se sentisse confortável em sofrimento. Talvez tenha perdido o alento ao descobrir a cura. E a radiografia pessoal tenha diagnosticado uma contradição com os valores punk contra-culturais. “O pequeno insatisfeito e sensível Jesus triste. ‘Porque é que não aproveitas?’ Não sei”, escreveu na carta da despedida.