Era dezembro de 2022, SOS saía já com as listas do ano fechadas. Aguardou um ano para ser exaltado pelas escolhas da opinião publicada, enquanto Kill Bill dava facadinhas no coração e esfaqueava ex-namorados, como um doce banho de sangue. O acrónimo de Save Our Souls, representado na capa por uma Solána Imani Rowe só numa prancha sobre o Mediterrâneo, mimetizava o sublime CTRL, de 2017. A glorificação colectiva de SOS - crítica e público aleatório - falou pelos dois. Em cinco anos, a maré de SZA não parou de subir e afirmou-a como primeira dama do r&b, se considerarmos que Beyoncé se exercita por outras linguagens (vogue house em Renaissance e country em Cowboy Carter) a partir da sua trave pop como ginasta acrobata, e Rihanna se dedicou a outros negócios.
Dezembro de novo a instigar a ordem dos acontecimentos. O mês em que as semanas duram meses é o escolhido para SZA abreviar o nome para Lana, o nome por que era chamada na adolescência. Quinze novas cançōes, entre sobras das sessōes de SOS e boas novas, distribuídas por uma hora de música como água para chocolate. E agora, conta-se Lana do zero ou a partir do botão de emergência de SOS? Enquanto este decalcava a fragilidade, sedução e glamour de CTRL com uma aura inimitável de diva do quarto do lado, Lana apazigua a dor e, eh lá, entrega-se ao romance sem freios.
Os instintos são-lhe inatos. Paixão intensa, coração na boca e voz melada, mas onde SOS e CTRL sofriam até ao osso, Lana sara feridas e repara dores. No alfabeto terapêutico, estas cançōes confidenciam uma fase de reconstrução e desassombro. Lana está cheio de guitarras oleosas dos anos 80 e acústicas também. Tranquilizantes usados No More Hiding, Diamond Boy (BTM), BMF (interpolada de A Garota de Ipanema) e em Drive, infalível Siri de viagens solitárias, abençoada por Rick Ocasek. Kendrick Lamar reaparece como amigo que responde sempre às chamadas em 30 for 30, mas é Scorsese Baby Daddy a culpada da pele de galinha.
O título sugere uma transformação identitária. Embora seja apresentado como um post scriptum de SOS, Lana tem vida própria e autonomia. Nem se trata de SZA ter guardado um caderno do optimismo no cofre. Estas cançōes pertencem a um outro diário, escrito e aprimorado nos últimos 24 meses, de reparação pessoal e desdramatização. Sem queimar páginas, reescreve o guião. Deixa cair muros, aceita a auto-crítica e ganha forças para um novo capítulo. Chill baby!
Últimos apanhados do ano
Sault - Acts of Faith
Acts of Faith já tinha sido partilhado por WeTransfer no verão, à semelhança da restante obra dos Sault. É e não é um álbum novo, descendente do concerto-acontecimento de final do ano passado. A novidade é a chegada às plataformas de streaming e a edição física prometida para abril. A soul luminosa e salvadora cristaliza mas a grande beleza de cançōes como Set Your Spirit Free, Gold Will Help You Heal ou The Lesson Is Over renova os votos de fé. Os Sault devolveram-nos uma autenticidade quase perdida e a crença persiste. Uma obra tão profícua em tão pouco tempo não deixa margem para grandes reinvençōes mas continuam a ser um caso à parte. E agora que já confirmámos quem é esta grande família em torno da voz de Cleo Sol, porque não mais concertos?
Fabiano do Nascimento e Shin Sasakubo - Harmônicos
A harmonia entre Fabiano do Nascimento e Shin Sasakubo nasceu em palco quando os dois guitarristas se encontraram no Japão. Harmônicos justifica o porquê de a experiência se ter aperfeiçoado em estúdio apenas quatro dias depois do concerto, para não se perder o calor do momento. Apesar do instinto natural, a tapeçaria é lenta e abstractiva. As técnicas de Nascimento, figura popular no Japão, e de Sasakubo, um apaixonado por culturas latinas, estreitam-se num só bordado meticuloso e por vezes barroco, referencial de mestres do choro como Pixinguinha e Baden Powell, e do lamento suspirado de Piazolla. Sereno por fora, comovente por dentro.
R.A.P. Ferreira - Outstanding Understanding
Outstanding Understanding é uma telenovela sonora centrada no tumultuoso divórcio de R.A.P. Ferreira da mãe do filho. O processo está documentado com minúcia no Bandcamp. O álbum funciona como áudiolivro do caso e como eco reverberante da angústia. Enquanto Milo e R.A.P. Ferreira, a música sempre cambaleou. Em Outstanding Understanding, arrasta-se pelos soalho com a saúde mental nas lonas. Sacudir este desconforto do peito é um alívio para a dor.
Havana Negra - Havana Negra
A salsa continua a ser vista como a música nativa de Cuba quando histórias como a de Buena Vista Social Club já demonstraram o contrário. O son afro-cubano de Compay Segundo ou Eliades Ochoa está muito mais próximo de definir a identidade musical da República do que a música festiva de casinos de Miami, interpretada por músicos cubanos. Havana Negra revive esse guião de amor e despeito com o pulsar do sangue quente de novos músicos educados no jazz. As guitarras bluesy remetem para o papel de Ry Cooder em Buena Vista Social Club. As peças vocais e instrumentais desenham um itinerário por diferentes GPS sonoros, como o infinito psicadélico e alguma liturgia, mas a surpresa constante não abala a coesão. Felizmente, Havana Negra não é um postal.
DJ Malvado - DJ Malvado & Friends: Angola House Music (Vol.3 Afro Duro)
A chapa não precisa de ir ao lume. Está quente desde os primeiros instantes da boda de DJ Malvado e amigos. Festim de afro-house, devolve-nos aos primórdios selvagens do ritmo, apesar de algumas vozes embelezadas e dos sintetizadores de trance, importados do afro-tech. DJ Malvado & Friends: Angola House Music (Vol.3 Afro Duro) tem pé pesado no acelerador e é gasolina para o corpo. Acelera na auto-estrada para chegar à pista. O batuque é o eixo, à volta dele há movimento constante como a linha irresistível de Guitarra do Ghetto (Afro Mix), a flauta de Flute Plus e o contágio do funk em Karoko. Música de apelo físico irresistível que não precisa de teorização para se entregar à festa.
Plastikman - Musik (30th Anniversary)
Como todos os nichos massificados, a technomania não é sinal de conhecimento catedrático sobre o techno. Não há mal em ignorar uma personagem essencial como Plastikman ou um manual de minimalismo como Musik, o pior é achar-se que tudo vem ensinado no Instagram. Como quase sempre na história da electrónica, o pioneirismo segue o progresso tecnológico. Bíblia do techno minimal, não esconde o estudo de clássicos como Kraftwerk, DJ Pierre ou Cybotron. Plastikman encharca-se em 808 e toma doses cavalares de funk e acid house para imaginar um som ainda por inventar que o futuro há-de cristalizar. De Plastique a Plasmatik e Marbles, contém algumas das armas letais do produtor. Som que entra na cabeça como vírus e jorra descontrolado pelo corpo. Parece convidar à apatia e ao isolamento interior mas quando detectamos o seu estado avanço, já controla todas as células.