Dentro de uma semana, estarão a ser digeridas as primeiras horas de Primavera Sound. No redemoinho de opiniōes públicas e publicadas, SZA, PJ Harvey, Water From Your Eyes, Militarie Gun, Eartheater, Mitski, Obongjayar, Amyl And The Sniffers e Lankum dirão se o primeiro dia de festival é o melhor, como o cartaz sugere. As primeiras horas com Amaura, Ana Lua Caiano e Silly robustecem a previsão. A música portuguesa ganhou lugares no cartaz deste ano, embora continue restrita às horas do sol. Até quando? Pela sua influência e dimensão - os dois factores de medição da relevância de um festival - o Primavera Sound é um falso arranque do calendário porque, na prática, a temporada ocupa todo o ano. E basta olhar ao primeiro fim de semana de Junho com festivais como o Coala, um paulista em Cascais repensado para uma identidade lusófona, e o electrónico Moga, na Costa da Caparica, para o confirmar.
A normalização dos festivais como tradição de verão, cada vez mais disseminada pelas quatro estaçōes, gerou várias consequências nos últimos anos: mais festivais, cada vez maior segmentação em géneros e públicos, mas também uma dificuldade crescente em criar momentos únicos que a experiência social por si só não resolve. Se juntarmos a canibalização do circuito de concertos - pense-se em todos os James Blakes que nunca vieram a Portugal para um concerto próprio, a tempestade na garrafa de água é perfeita. Portanto, a reclamação de que “são sempre os mesmos” é meia-verdade. Nomes como Idles, Jungle e Metronomy, para citar os mais flagrantes, repetem-se de facto, tal como na electrónica há uma rotatividade de nomes cimeiros das mais variadas subculturas que inviabilizam o efeito-surpresa. O que não é de todo verdade é que a geografia de festivais continue restrita à centralidade mediática e corporativa.
Alive, Primavera Sound, Super Bock Super Rock, Paredes de Coura e Kalorama falam para um centrão com blocos esquerdos e direitos mas há outras paisagens sonoras. Festivais de música electrónica são à pazada (Sónar, Lisb-On, Neopop, Moga, Waking Life, Boom, Brunch Elektronic). Das mais variadas tipologias de música brasileira crescem como tapioca. De rock e outras extremidades, multiplicam-se (Sonic Blast, Amplifest, Vagos Metalfest), assim como de jazz (Jazz em Agosto, Matosinhos em Jazz e o Montreux português Cool Jazz Fest). E há uma tendência crescente de festivais só de música portuguesa - há público, há números, há vereadores a querer fotos com os artistas. Festivais como o Afro Nation passam completamente a leste dos noticiários porque falam para o turismo, mas trazem milhares de ingleses à Praia da Rocha. O já desertado Rolling Loud - segundo consta porque a edição do ano passado correu muito abaixo das expectativas, no balanço entre o cachet milionário pago a Travis Scott e o retorno - roubou o público de hip-hop a festivais como o Super Bock Super Rock que, em 2022, teve A$ap Rocky quase vazio.
Não há falta de diversidade de propostas, há sim demasiada circularidade nos mesmos meios. E há principalmente uma saturação do modelo que tem na repetição de nomes uma consequência. Os festivais transformaram-se gradualmente num centro comercial de concertos ao domingo com dezenas de palcos e centenas de vagas por preencher, obedecendo a critérios comerciais e necessidades mediáticas dos patrocinadores, que encaminharam a experiência para um ritual capitalista supremo que já nada tem a ver com os princípios libertários originais. Seria demasiado idealista esperar-se de algum festival, em Portugal ou no mundo (Coachella, Burning Man, Glastonbury), o poder agregador de multidōes em torno de ideais colectivos como Woodstock - o progenitor dos festivais enquanto manifesto de amor e insubordinação - mas não é preciso recuar muitos anos nem sair de Portugal para localizar bons exemplos de harmonia entre curadoria, público e experiência.
Voltemos à encosta do Parque da Cidade. Quando o Primavera chegou a Portugal em 2012, não se limitou a duplicar a receita de Paredes de Coura e a proclamar argumentos inconsequentes de calendário, como outros fazem no final de agosto. Afirmou uma diferença ao ler os movimentos de ruptura de uma cultura indie no sentido lato - o The Weeknd doméstico da trilogia inicial esteve na edição inaugural e sem grande - e após alguns anos de hesitação e noites falhadas como a dos Ride em 2015, o festival renasceu quando a organização percebeu que a nova ordem pop era pós-género e que o futuro seria mais Rosalia e Kendrick Lamar do que Wilco e Built to Spill. A sensação foi de libertação e frescura ao contrário do que sucede agora quando o promotor José Barreiro afirma que gostaria de ver Taylor Swift e Billie Eilish no Primavera Sound portuense - a impressão é de afunilamento, normalização e desgaste.
A falta de imaginação dos programadores é consequência da saturação do circuito e da diluição de motivos de quem, verdadeiramente, já ninguém se recorda. Os festivais são apenas uma factura exposta da banalização de tudo e da diluição da contra-cultura em modelos liberais que se servem da autodeterminação individual para criar falsas ilusōes colectivas. Celebra-se, sim, mas o quê? O refrão, o rapaz da cerveja, o brinde da Axe, as centenas de gostos numa fotografia? Até festivais saudáveis, civilizados e confortáveis como o Primavera pagam o preço do congestionamento e de uma paralisação colectiva que bloqueia os melhores motivos de desencarceramento e desbloqueio. Os festivais, pelo menos os grandes, já foram parte da emancipação, hoje são parte da saturação. Como libertar do espartilho?
Há bons exemplos entre a rede de pequena e média dimensão como Bons Sons, Aleste, Tremor ou Zigurfest, assentes numa rede de proximidade com a comunidade local, impossíveis, no entanto, até para graúdos que cresceram na aldeia como o Paredes de Coura. Já se percebeu que se estes querem continuar a jogar nas competiçōes internacionais precisam de patrocinadores para pagar a conta, mesmo quando as marcas são excessivamente intrusivas - razão pela qual diversos festivais deixaram cair ou mudaram de patrocinador principal. A sobrecarga de festivais criou uma falsa noção de que tudo se joga em três dias - como se o resto do ano não existisse -, confortável para os promotores que assim não gastam tempo em produçōes próprias mais dispendiosas e menos rentáveis.
Porém, a tese de que os festivais portugueses são os mais baratos da europa está a envelhecer - efeito da subida dos custos de produção e de uma pandemia que ainda deixa marcas. O preço acessível é essencial para a democraticidade. Os festivais, além de caros e desgastantes em toda a sua extensão desde a compra do bilhete até ao regresso a casa, estão a tornar-se elitistas. Como em tudo na vida, o fosso cava-se entre quem pode e quem não pode. Talvez por isso, só nomes certos como Pearl Jam e Lana Del Rey garantam para já noites esgotadas. Ou as previsōes estão muito enganadas, ou as vendas estão a quebrar face às de anos anteriores. Efeito da repetição de cartazes? De uma inflação que estrangula o prazer? Também, mas seguramente de um cansaço do formato.