Há não muito tempo, indiquei uma artista não assinada a um agente com quem tenho relação de confiança. Como estávamos juntos, pude acompanhar os passos da prospecção. Primeiro, abriu o Instagram, verificou o número de seguidores e tirou a pinta à imagem. A seguir, procurou o número de visualizaçōes do único vídeo disponível no YouTube. E só dias depois ouviu a música.
Passou-se à minha frente, como se passa todos os dias em reuniōes, conferências, conversas de corredor, por Whatsapp e telemóvel. É apenas um exemplo de um comportamento normalizado entre indústria (e público), e que tende a agravar-se quanto maior é o endeusamento dos números.
O fenómeno não é propriamente novo. Os Top of the Pops, os charts da Billboard, todas as tabelas de venda ou de airplay sempre valorizaram a matemática. Até aí, tudo natural. A grande diferença é que esta prática se normalizou. Perdeu-se a resistência. Toda a gente aceita as regras do jogo porque o ecossistema digital da pop ainda está na infância e não interpreta os números além do absolutismo, por muito que se diga o oposto.
A validação pelos números é uma minhoca que se infiltra na maçã. Distorce a relação com a música porque lida apenas com a consequência, esvaziando o processo a um meio para atingir um fim. E se o fim não é generoso em dígitos, quer dizer que o meio não é válido. Não rende, não serve, não gera resultados imediatos. Não oferece satisfação à ansiedade colectiva. Há uma visão aceite de que o que não consegue números, nas redes sociais, no YouTube, ou nas plataformas digitais de streaming, é por fraqueza dos seus autores - não foram capazes de conquistar uma “audiência”, logo são inferiores.
Já lá vai o tempo em que a democratização trazia oportunidades a quem não as tinha. Os almoços grátis estão muito caros: publicidade paga nas redes sociais e no Google. Banners no Spotify. Assessoria de imprensa para entrar nas rádios e receber alguma atenção do que resta da imprensa. Fora todas as outras despesas de manutenção com fotos, vídeos, equipamento, estúdios, ou viagens. Até para nomes médios, a estrutura de custos está a tornar-se incomportável.
Não há nada de errado em ter consciência dos números. Essa informação pode ser relevante e preciosa na tomada de decisōes. Não é nada de novo, aliás. Quando a grande fatia do bolo vinha da música gravada e não dos concertos, era prática comum os promotores de concertos ligarem para as editoras, a fim de confirmar os números de vendas. E havia uma estimativa de que dez por cento dos compradores de álbuns, teriam potencial interesse em adquirir bilhete para o concerto.
Estatísticas de seguidores, métricas de visualizaçōes ou vídeos criados no TikTok com uma determinada canção podem tirar o pulso ao momento, ou revelar potencial de crescimento, mas são apenas a coroa da moeda. É natural que as maiores corporaçōes - editoras, agências, ou promotoras - se preocupem mais com o bolo do que com a farinha. São por regra multinacionais cotadas em bolsa, operam de milhōes para milhōes, e vivem para os accionistas. São estruturas macro com macro-problemas e necessidades. O problema é a falta de resistência generalizada do restante sector, incluindo a dos músicos que se vêm numa montra, são pesados ao quilo e aceitam participar como espectadores num jogo que dificilmente irão ganhar. Estão a alimentar uma máquina que irá devolver ao público a moeda atirada ao elefante.
Em entrevista ao Guardian, o produtor Four Tet foi confrontado com a percepção de finalmente estar a receber o “crédito merecido: depois do DJ set tripartido com Skrillex e Fred Again…, recebido em delírio geral no encerramento de Coachella e no Madison Square Garden, de Nova Iorque, para cem mil pessoas. Que Kieran Hebden, com mais de vinte anos de labor, tenha sido descoberto por um novo público é natural. Que esses milhares já se relacionassem com o dubstep compulsivo de Skrillex mas não o conhecessem, é normal. Que a electrónica emocional de Fred Again… tenha uma visibilidade que a arquitectura moderna de Four Tet nunca teve é um sinal dos tempos.
Mas para quem há vinte anos foi descoberto e convidado pelos Radiohead para abrir a digressão de Hail To The Thief, aliás iniciada no Coliseu dos Recreios, pela identidade criativa, e não por outro motivo; remisturou toda a gente, de Aphex Twin aos Radiohead, The xx ou Lana Del Rey, trabalhou com Madlib, Burial, Thom Yorke, Laurie Anderson e Steve Reid, e construiu uma sólida obra a solo, a ideia peregrina de recolher em 2023 os “louros merecidos” só é possível porque se aceita que a credibilização venha da quantificação.
Como se o mundo inteiro estivesse condenado a ser uma grande superfície comercial sem espaço para lojas de bairro nem relaçōes de proximidade. É o triunfo em toda a linha do neo-liberalismo em terreno cultural onde historicamente as defesas eram altas.
Foi o carinho pela música que permitiu a Kieran Hebden ser Four Tet. Foi o reconhecimento da comunidade melómana que permitiu tirar água da pedra para que contemporâneos como Skrillex pudessem conciliar estranheza e familiariedade para multidōes sedentas de suar ao som de máquinas e softwares. Foi a longevidade e resistência que permitiu a figuras mais recentes como Fred Again… pudessem ter modelos de canção produzidos com máquina para ligar o coração ao corpo e legitimar refrōes como o Put your loving arms around de Billie (Loving Arms).
É necessário devolver o carinho à música e construir um novo ecossistema mais transparente e consciente dos limites dos números. Nos anos 90 e 2000, a indústria rejeitou a tecnologia para proteger barrigas e condomínios. Nos anos 2010, ao reconhecer no streaming um novo modelo de receita, deixou-se capturar. E este tem sido o discurso dos últimos anos: aceitar sem questionar demasiado. Está na altura de mudar a narrativa e procurar soluçōes a esta forma de monocultura, mas só um sector unido pode ser capaz de encontrar escapatórias.