O mundo moderno pode ser uma tortura e uma panaceia. A vertigem de cumes e sopés é constante no vaivém arterial de êxtases e depressões. Desses restos zeros, feitos de luzes no fundo do túnel e mariposas a braços contra a corrente, nasce uma força por vezes inexplicável. Pudesse o ânimo ser tão contagioso quanto a desesperança ou a inércia - às vezes é mesmo.
Vivemos uma hora de inverno a atrasar os ponteiros da civilização para uma Idade das Trevas que se julgava restrita aos livros de História. E quão importante devia ser a memória para não repetir erros, mas o fanatismo e a ganância continuam a dominar os palácios do poder. São tempos sombrios estes em que os justos morrem e as crianças nem chegam a nascer. De despejos, refeiçōes frias e meias pensōes. De rendas a subir e a cabeça a explodir. De sonos roubados e sonhos assaltados. O dia seguinte é sempre longe demais para quem nem sabe onde vai dormir. E no entanto…
Isto anda tudo ligado, explica a sociologia e sublima a canção de Sérgio Godinho. Que a música portuguesa vive um período de grande fertilidade já não é novidade. Que esse fulgor se deve a uma relação de proximidade e franqueza com o país é uma constatação disponível aqui. Face à enxurrada de ediçōes e à pouca visibilidade de boa parte delas, recrudesce a importância de as reconhecer, escutar e atribuir significado. Só com massa crítica podem ser parte de uma história a acontecer.
Nos últimos dois meses, a clássica reentré registou a entrada de Diabos M'Elevem de Riça, Três anos de Escorpião em Touro da Filipe Sambado, 95 Mindjeres de Nídia, Vibraçōes de Prata de Xexa - ambos da Príncipe, Vens ou Ficas de Malva, Ressaca Bailada do Expresso Transatlântico, Xei di Kor de Prétu Xullaji, Chelas de Sara Correia, Tricot dos Mão Morta e Pedro Sousa, Leveza de André Henriques, Mãe de Cristina Branco, Sensoreal de Rita Vian, Estilvs Misticvs do Conjunto Corona, Piano para Piano de Rodrigo Leão, Pós-Esmeralda dos Conferência Inferno e In God's Hands Vol. 1, de Sensei D, para citar apenas os notáveis e reconhecer o óbvio: o nível destas águas subiu.
Alguns são parte de um grande todo, outros apenas um infinito particular mas talvez a grande novidade seja não apenas a procura por uma identidade geográfica que cada vez mais soa a um acto natural e não a um ensaio de tentativa e erro, mas a emergência de uma geração de criadores que, ao ver-se confrontados com um horizonte danificado, escrevem e produzem música para aliviar o peso das manhãs sem sol, olhando para além dos seus ombros. Podem até ser gritos mudos, perdidos na cacofonia, mas esse é o teste definitivo do algodão. Move-os a causa, a consequência é a que vier.
Álbuns como Diabos M'Elevem de Riça, Vens ou Ficas de Malva são reparadores de angústias e propulsores de inquietaçōes, mesmo quando o expressam em voz baixa, murmurando em vez de gritar, como no caso de Carolina Viana (já conhecida pelas terapias da dupla Redoma). Já 95 Mindjeres de Nídia ou Xei di Kor de Prétu Xullaji respondem ao “salve-se quem puder” vigente com um ser solidário, atento e activo. 95 Mindjeres presta homenagem ao batalhão de 95 jovens mulheres, lideradas por Teodora Inácia Gomes e Titina Silá que lutaram pela independência da Guiné-Bissau durante a década de 60. Xei di Kor é um depoimento pan-africanista sem cerimónias contra o racismo e o fascismo, de reflexão e acção contra as diferentes discriminaçōes raciais descendentes das desigualdades socioeconómicas.
Na sua especificidade, qualquer um deles possui fulgor criativo para alcançar uma generalidade maior. Diabos M'Elevem de Riça, por exemplo, tem tudo para trazer novas narrativas a um hip hop português carente de surpresas, desvios e contraditórios. Território ao qual não é estrangeiro Xei di Kor, do antigo Chullage, que tal como Riça absorve do folclore regional do norte, bebe da ancestralidade cabo-verdiana, angolana e guineense o firmamento contestatário e um desejo de revisitar os antepassados para se reconhecer a si mesmo e à batalha diária.
O individualismo é uma marca fortíssima dos últimos anos, descendente do sistema económico e da amplificação nas redes sociais. Criou-se a ideia de que podíamos ser deuses de nós mesmos. Comandar pequenos impérios de seguidores, confundido-se visibilidade com poder. O que esta(s) nova(s) música(s) nos está a dar é o inverso. Altruísmo. Sinceridade. Generosidade. Tudo aquilo que fomos perdendo nos últimos anos para as lógicas algorítmicas e é urgente restituir.
Toda a arte nasce da primeira pessoa mas quando a música sai para a rua, deixa de pertencer a quem faz e passa a ser de quem ouve. Do que estes álbuns tratam é de um desejo irrepremível de transformação em que a música exprime desconforto e centelhas de esperança, e não ego ou afirmação pessoal. E independentemente de toda e qualquer obra reflectir o quartel de ideias do seu autor, há um contexto social de desfavorecimento que unifica as partes e faz delas coletes salva-vidas. Porque, no fundo, o que andamos cá a fazer é desviar-nos das balas.