Com José Mário Branco no Festival de Teatro de Almada em 1986
Combinámos em sua casa numa praceta perpendicular à Calçada do Carriche. Era uma segunda-feira de geada igual às outras numa zona indiferenciada de subúrbio onde as pessoas saem de madrugada com os filhos e chegam de noite para fazer o jantar e passear o cão. Abriu a porta e sorriu. “Faça favor, esteja à vontade”. Tratou-me pelo nome. Cortês, sem paternalismos ou intençōes veladas de veneração. Encaminhou-me para o escritório juntamente com o fotógrafo do jornal i, onde então escrevia, e o responsável da editora que coordenava a antologia Cançōes Escolhidas. Um segundo e derradeiro mergulho no cancioneiro essencial, depois da submersão em águas profundas de Inéditos (1967 - 1999). Estava magro, com o rosto encovado. Provavelmente, consciente da proximidade do fim mas lúcido como um sábio. Era ele. José Mário Branco, do Porto, “muito mais vivo que morto”.
Nas estantes, muitos livros. Alguma discografia de música clássica, fotos de família e, se bem me recordo, uma guitarra acústica no tripé. Do palmarés pessoal nem vestígios. Posso estar enganado mas não me lembro de um álbum na parede, uma capa serigráfica ou foto de concerto. Zé Mário não era homem de galardōes ou pratas da indústria mas as paredes brancas de si mesmo impressionavam pela postura desinteressada. Do passado? Dos louros? Da vaidade? Provavelmente, um pouco de tudo. Pensei em perguntar-lhe o porquê, mas tinha muitas perguntas para a escassez de tempo. Um confronto desigual entre uma vida e 60 minutos. Achei que chegávamos lá e, de certa maneira, assim foi.
A conversa já ia a meio. Animado, José Mário Branco gostava que puxassem por ele como um fio ao novelo. Há muito que deixara de gravar para si. 2004, ano do fabuloso e incompreendido na época Resistir É Vencer. Interrompera também a relação com os palcos. A Internet das coisas mal se lembrava das noites passadas após o encontro com Sérgio Godinho e Fausto no histórico Três Cantos. Sim, fora ele o maestro do espectáculo e responsável pelo sonho acordado de reunir a Mariazinha, a Rosalinda e o Charlatão à volta das Quatro Quadras Soltas, do Ser Solidário e da Maré Alta. Quem teve o privilégio de se emocionar numa das quatro noites, percebeu que não haveria segunda volta. Dos três, só resta SG Gigante no maço.
Quis saber então por que não mais dava concertos. “Tinha alguns concertos marcados. Fui a Faro [20 de janeiro de 2012 no Teatro das Figuras]. Sala quente, cheia, toda a gente a cantar, mas eram as mesmas canções de sempre. A nostalgia não é para mim. Comecei a sentir-me mal no meio daquilo. Pedi ao Paulo Salgado [manager] para cancelar tudo. Enquanto não houver um movimento social, não faz sentido cantar aquelas cançōes”. Era o tempo da troika, importa recordar. De dias mais escuros que a noite em que a cólera de FMI se resgatava como lição histórica desperdiçada. Ainda assim espantoso. Quem seria capaz de comprometer o seu património modelar e celebrado pela inércia nacional? O desconforto não era de vaidade, como é habitual nestas renúncias, mas de falta de compromisso entre a Inquietação e a comunidade que não a trespassava para a rua. A coerência entre as palavras e os actos é uma qualidade cada vez mais rara. Para JMB, tratava-se de um mandamento.
José Mário Branco era igual às cançōes e as cançōes eram o cartão de cidadão de José Branco. Só a conclusão do óbvio já seria tão extraordinária para guardar o frente-a-frente no disco rigído das memórias, mas era mais do que o embevecimento de estar perante alguém que fez parte da minha vida, sem nunca me ter conhecido, praticamente desde o berço, e que, através da música, me deu moniçōes para ser melhor - a ética como pilar estrutural do humanismo. JMB detestava a baba e eu o deslumbramento. Questão após questão, a resposta trazia liçōes de história, exemplos de resistência, maneiras de sabotar a engrenagem e até um perspicaz sentido de humor. Fiz-me criança a sorver um gelado.
“Em 61, quando começa a guerra colonial, mais espírito há. “Mas que é isto? Para quê esta guerra?”. As duas perguntas, feitas em público, davam prisão. Até que foi o próprio Conselho de Veteranos, o organismo mais elevado e poderoso de praxes em Coimbra, que fez um decreto a acabar com as praxes. Querem vida coletiva? Vão para a Académica. Para o jornal, para as secções, para os grupos de teatro, para o futebol. Houve muita malta de esquerda, como eu, que jogou na Académica. O Zeca Afonso foi extremo direito na Académica. Não chegou foi à primeira equipa”, contava com alguma graça sobre a relação entre Coimbra, o desmando e o mundo académico, em que reentrara já com nome firmando.
“Não havia cá a ideias das praxes justificadas por integração, como uma coisa reacionária, uma manifestação de poder irracional. Alguns dos jovens com quem privei no curso davam uma importância enorme às praxes. Precisavam disso. Agora, veja o retrocesso que isso representa. Não se entra em conflito com o poder mas faz-se aos outros o que me fazem a mim”, contestava, referindo-se ao período em que, na casa dos 60, frequentou o curso de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. JMB congratulava-se de ter oferecido “ao departamento toda a minha biblioteca de Linguística porque faz lá mais falta”. Ser solidário era um dever.
A entrevista publicada no jornal i pode ser lida aqui. Quando perguntei a JMB se estávamos a passar uma crise circunstancial de identidade ou se se tratava de um ferida mais profunda, riu-se. “Oh Davide, são ciclos”, respondeu e repetiu. O asco ao saudosismo apressava um optimismo moderado. Suspeito que desconfiasse dessas palavras mas toda a vida fora assim. Um combatente pela igualdade, um operário de movimentos sociais, um artesão de utopias. Até ao fim, sem baixar a guarda.
Atravessei o Tejo a conversar comigo sobre a visão de JMB. Já era o ciclo de Trump, dos alvores de Bolsonaro e do Brexit, mas na Europa ainda colhia uma ideia progressista de que a ameaça não atravessaria o Atlântico. De que a extrema-direita não sairia do armário, de que os comentários tóxicos seriam eliminados naturalmente por anti-vírus de bom-senso e de que os exércitos de bots não sairiam da caixa. Na altura, achei-o paradoxalmente resistente à mudança. Acreditava que as geraçōes proveta pudessem forçar a mudança e a tecnologia ser canalizada para a partilha de conhecimento e não para a disseminação de desinformação. JMB tinha a história do seu lado. (já depois de ter desligado o gravador do telemóvel, apontou para a capa da Economist, que assinava. Capitalism Must Change era o título. “E é uma revista de direita!”, bradou)
Aquelas respostas nunca me deixaram. E entretanto, a vida aconteceu. A 25 de maio de 2019, levaram-nos o Zé Mário e o país não lhe manifestou toda a gratidão. Talvez hoje, com a democracia a lutar pela sobrevivência, a sua perda tivesse outro impacto nas ruas. Quando por vezes os meus alunos me perguntam sobre a entrevista que mais me marcou, Amy Winehouse é uma resposta óbvia. Esses longos 15 minutos de conversa num quarto de hotel da Alexanderplatz entre um jornalista verde e uma frágil defensora de cançōes maiores que a vida, desconfiada de todo o circo montado à sua volta, valeriam mais que curtos 60 minutos de apontamentos para a vida cedidos por um companheiro? Talvez não, ou provavelmente nem há comparação. Com o tempo, percebi que não foi uma entrevista a JMB. Foi um privilégio ouvi-lo.
José Mário Branco (1942 - 2019)